A Heresia Lésbica — Sheila Jeffreys

Carla Gomes (@carlahenriqueg)
31 min readJun 19, 2024

--

Capítulo 5 — Retorno ao Gênero: Pós-Modernismo e Teoria Gay Lésbica

Nos anos 80, houve um entusiasmo repentino com o trabalho de Mestres do Pós-Modernismo (Lacan, Foucault, Derrida) e pela incorporação deles à teoria feminista. Críticas feministas argumentaram que isso levou a uma despolitização do feminismo. Na área da teoria gay e lésbica, o trabalho de ícones masculinos do pós-modernismo e de teóricos inspirados por eles tem sido recebido com entusiasmo ainda maior. Isso não é surpreendente, já que o que é chamado de teoria lésbica-e-gay, isto é, uma teoria que homogeneiza lésbicas e homens gays, deve ser palatável para homens gays. Qualquer coisa que cheire demais ao feminismo é visto com suspeitas. O projeto de criar uma teoria feminista lésbica é, agora, visto por muitos como bizarramente separatista. As estrelas da nova teoria lésbica-e-gay, Judith Butler e Diana Fuss, são mulheres, mas envolvidas na reciclagem do feminismo fundado, principalmente, por Mestres gays do pós-modernismo, o que não irrita as sensibilidades do homem gay. Isso não é uma tarefa fácil. Como, por exemplo, tornar o fenômeno do drag não apenas aceitável, mas revolucionário na teoria lésbica-e-gay, quando esteve entalado na garganta da teoria feminista desde que lésbicas discordaram da liberação gay? Isso deve ser alcançado com um retorno do gênero, uma invenção de uma versão inofensiva do gênero como uma ideia com a qual lésbicas e homens gays podem brincar infinitamente e ser revolucionários ao mesmo tempo.

A versão de gênero que as teóricas lésbicas-e-gays estão apresentando está muito distante do entendimento de gênero que outras teóricas feministas possam ter. É o gênero despolitizado, higienizado e algo difícil de associar à violência sexual, desigualdade econômica, morte de mulheres em decorrência de abortos clandestinos. É o gênero reinventado como brincadeira para aqueles que se vêem distantes do âmago da opressão de mulheres. Ele combina com o mundo da teoria lésbica-e-gay, porque é o feminismo como diversão, ao invés do feminismo como irritantemente desafiador.

Vamos olhar primeiro para quem são as novas teóricas lésbicas-e-gays, já que isso pode nos ajudar a entender porque elas escolheram suas políticas, especificamente. Enquanto as políticas relevantes do feminismo dos anos 70 tendem a ter tido algum conhecimento em política, história e sociologia, a nova variedade vem dos estudos literários e culturais ou fílmicos. Vamos pegar como exemplo o livro Inside/Out. Lesbian Theories, Gay Theories, editado por Diana Fuss. Judith Butler ensina em um Centro de Humanidades e, portanto, não necessariamente na área da crítica cultural. As outras dezoito autoras são e cobrem literatura, mídia, filme, fotografia e história da arte. Não existe razão para que uma crítica literária não pudesse fazer uma contribuição valiosa ao desenvolvimento da teoria política, mas quando tudo o que é visto como “teoria” por uma geração inteira de novos professores e estudantes lésbicas e gays emanam das artes, e não das ciências sociais, então pode haver motivo de alerta. Isso pode ajudar a explicar porque essa nova teoria tem pouco tempo para conversas antiquadas sobre relações de poder material, economia, poder que não apenas brinque, mas resida nas mãos de classes e elites específicas. A teoria pós moderna elevou a língua a um lugar preeminente na política, a palavra se tornou realidade, o crítico cultural tornou-se o ativista político empunhando uma caneta, e a dona de casa que é espancada por seu marido porque deixou uma teia de aranha em um canto se torna, estranhamente, invisível.

Vamos agora olhar para as autoridades citadas pelas novas teóricas lésbicas-e-gays. As notas na introdução de Diana Fuss citam Judith Butler, Lacan, Derrida mais de uma vez, Foucault, outros nove homens e mais duas mulheres. Você pode achar isso verdadeiramente surpreendente, uma vez que existe um enorme volume de teoria original do feminismo lésbico que poderia ser uma inspiração, mas essa teoria não existe para as novas lésbicas-e-gays. Não existem referências a Mary Daly, Audre Lorde, Janice Raymond, Julia Penelope, Sarah Hoagland, Charlotte Bunch. Essas separatistas do intelecto que postulam uma teoria na qual homens gays não são facilmente assimilados têm desaparecido.

Na raíz do problema de gênero na nova teoria lésbica-e-gay, repousa a ideia da dominância da língua e de oposições binárias que vêm de Lacan e Derrida. A língua é vista como excessivamente importante. Enquanto outras feministas possam ver linguagem como importante, em um cenário de outras forças opressivas, na manutenção da opressão de mulheres, como restrições econômicas, violência masculina, a instituição da heterossexualidade, as novas teóricas lésbicas-e-gays pós modernas vêem a linguagem como primária. A língua opera por meio da construção de falsas oposições binárias que, por algum processo misterioso, controlam a maneira como as pessoas pensam e, portanto, como elas agem. Masculinidade/feminilidade, imagina-se, deve ser um desses binarismos, o que é mais fundamental para a opressão de mulheres, lésbicas e gays.

O feminismo pós moderno deixa homens fora da análise. Poder se torna, em um sentido foucaultiano, algo que apenas paira constantemente, reconstituindo a si mesmo sem qualquer propósito e sem qualquer conexão real com seres humanos reais. Assim, Judith Butler imputa o poder a “regimes” como em “os regimes de poder do heterossexismo e o falogocentrismo buscam aumentar a si mesmos por meio de uma repetição constante de suas lógicas…”. Em outro lugar, ela continua a antropomorfizar a heterossexualidade:

Que essa heterossexualidade esteja sempre elaborando a si mesma é evidência de que está perpetuamente em risco, isto é, que ela “sabe” da possibilidade de ser desfeita.

Essa é uma heterossexualidade com um diploma de pós-graduação! Uma análise feminista pode, de maneira genérica, questionar sob quais interesses esses regimes foram estabelecidos e operam, uma questão cui bono pode ser necessária nesse contexto. Então homens podem aparecer na foto.

O entendimento de Butler acerca de gênero é similarmente removido de um contexto de relações de poder.

Gênero é a estilização repetitiva do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de uma estrutura regulatória extremamente rígida que coagula ao longo do tempo, produzindo a aparência de substância, de um tipo de ser natural.

Ela diz, em outro lugar, que gênero é drag. Gênero, então, se torna uma maneira de posicionar o corpo, de vestimenta, de aparência, e não é surpreendente que Butler seja capaz de chegar à conclusão de que todas as formas de trocar o gênero, como drag e a encenação de papéis sexuais por lésbicas, são revolucionárias. Mas não fica claro onde a verdadeira opressão vulgar de mulheres se encaixa nisso tudo. Quando uma mulher está sendo espancada pelo homem bruto com quem vive, é porque ela adotou o gênero feminino em sua aparência? Seria uma solução ela adotar um gênero masculino e desfilar com uma camisa ou com calças de vaqueiro de couro? Quando o gênero é visto como uma ideia, ou uma forma de aparência, então a opressão de mulheres desaparece. A tendência da ideia de gênero a invisibilizar as relações de poder da supremacia masculina têm sido comentada por teóricas do feminismo radical. Gênero como um conceito sempre foi mais popular entre teóricas feministas liberais e socialistas, agora é também entre as pós-modernas.

Quando teóricas feministas de qualquer posição política escreveram sobre gênero no passado, elas viram como algo que deveria ser superado, substituído. Feministas, heterossexuais ou lésbicas, têm, com razão, se sentido insultadas ao serem chamadas de femininas ou masculinas. Elas têm visto a si mesmas, como muitas ainda se veem, como objetoras conscientes ao gênero que estavam se recusando a ter qualquer relação com ele ou a performá-lo. Algumas seguiram o caminho da androginia, mas as limitações dessa abordagem também têm sido apontadas por teóricas feministas radicais. Androginia, como ideia, tem sido vista como dependendo de uma noção contínua de masculinidade e de feminilidade, uma vez que deve combinar traços associados com esses dois conceitos e, portanto, reificá-los, em vez de abandoná-los. Esse projeto, no qual feministas e feministas lésbicas têm se engajado por cerca de 20 anos ou mais, de explodir o gênero ao se recusaram se comportar de acordo com as leis de gênero, agora tem sido declarado não apenas como mal-concebido, mas também como impossível por algumas feministas pós-modernas. Butler identifica o movimento da “pró-sexualidade” dentro da teoria feminista como uma afirmação de que a sexualidade é “sempre construída dentro dos termos do discurso e de poder, onde poder é parcialmente entendido em termos de convenções culturais heterossexuais e fálicas”. Ela concorda com isso e afirma que é impossível construir uma sexualidade que esteja fora dessas convenções

Se sexualidade é construída culturalmente dentro das relações de poder existentes, então a postulação de uma sexualidade normativa que seja “anterior”, “fora”, ou “além” do poder é uma impossibilidade cultural e um sonho político impraticável que adia a tarefa concreta e contemporânea de repensar as possibilidades subversivas para a sexualidade e a identidade dentro dos próprios termos de poder.

O feminismo, como tem sido entendido, geralmente, foi declarado impossível. A teoria pós-moderna tem sido recrutada para apoiar o libertarismo sexual e, em específico, o projeto sadomasoquista.

A maior parte das feministas dos anos 70 e 80, provavelmente, têm visto a si mesmas como engajadas na tarefa de eliminar gênero e a sexualidade falocêntrica. Temos estado envolvidas na criação de algo novo e diferente. Agora descobrimos que estávamos tentando fazer algo impossível. Eu tenho jovens alunas lésbicas que dirão para mim “Com certeza você tem gênero no seu relacionamento”. Elas não sabem que estão sendo ofensivas, negligenciando mais de vinte anos de luta de feministas lésbicas para não terem tais coisas. É quase tão frustrante quanto quando homens costumavam me dizer, quando era um embrião feminista, que existia algo como uma feminilidade e uma masculinidade “naturais”. Homens não tendem a me falar isso mais, apenas pós-modernos de ambos os sexos. Essas estudantes aceitam, como resultado de uma alta ingestão de teoria pós-moderna, que é impossível desviar do gênero. Você não pode se libertar de uma oposição binária, de acordo com Derrida, você só pode dar mais peso para a metade mais fraca do binarismo e gerar estresse e desgaste.

Imaginar que você pode desviar é chamado de essencialista. Um novo significado para a palavra essencialista foi inventado para que pudesse ser usada contra todas aquelas que mantêm alguma crença na possibilidade de ação social para criar mudança social. Era uma vez uma época em que poderíamos ter sabido nossa posição em relação ao essencialismo. Ele representava a crença de que homens e mulheres eram natural e biologicamente diferentes. Essa não era uma crença de feministas radicais que sempre foram missionárias do construcionismo social, embora tenha sido conveniente para teóricas feministas de outras crenças fingir o contrário. Chris Weedon é uma feminista pós-moderna que reitera, em seu trabalho, a asserção intrigante de que feministas radicais que querem transformar a sexualidade masculina no interesse da liberdade das mulheres, na verdade, são deterministas biológicas que acreditam que ela não pode ser mudada! O que agora é chamado de essencialismo é a crença de que uma lésbica pode evitar o gênero, ou a crença de que é possível praticar a sexualidade não organizada em torno do pênis ou do desequilíbrio de poder. Tais crenças são chamadas de essencialistas por pós-modernos porque elas repousam sobre a existência de uma essência desconhecida do lesbianismo. Tudo o que é conhecido ou que pode ser pensado é gendrado e falocêntrico, e apenas brincando dentro das regras desse sistema é que se pode alterá-lo. Seria possível virar o jogo e acusar aqueles que dizem a lésbicas que elas não podem sair do gênero ou do falogocentrismo de essencialistas com muito mais justificativas do que se poderia imaginar. Mas inventar e lançar novas versões do essencialismo é algo que eu gostaria de evitar. Basta dizer que a ideia da inevitabilidade do gênero e do falogocentrismo é brutalmente determinista, pessimista e consegue apagar do mapa o projeto feminista dos últimos 20 anos. Ela se encaixa na tendência geral do pós-modernismo de olhar para o ativismo político e para a crença de que a mudança política é possível como suspeitas, irrisórias e, de alguma maneira, vulgar.

Vamos olhar mais de perto o que Butler vê como as possibilidades revolucionárias do drag. A construção social de gênero é um princípio muito antigo e básico do feminismo. Mas, para os pós-modernos, isso, como outros insights tradicionais e muito úteis do feminismo, são vistos como novos e empolgantes. E de fato pode ser que pareçam empolgantes para toda uma nova geração de jovens mulheres que não têm qualquer acesso à literatura feminista dos anos 60 e 70 porque essa literatura não aparece em seus cursos e não é referenciada em nenhum lugar. O potencial revolucionário do drag e da encenação de papéis sexuais, afirma Butler, reside na habilidade dessas práticas em iluminar o fato de que gênero é socialmente construído. Elas revelam que gênero não tem essência ou forma ideal, mas é tudo apenas drag, seja vestido por uma mulher heterossexual feminina, por um homem heterossexual masculino ou por lésbicas encenando papéis sexuais ou artistas gays ou clones.

Drag constitui a maneira mundana na qual os gêneros são apropriados, teatralizados, vestidos e realizados; ele implica que todo o gendramento é um tipo de personificação e aproximação. Se isso é verdade, parece, não há um original ou primário que o drag imita, mas gênero é um tipo de imitação para o qual não há original

Gênero, na medida em que compreende apenas gestos, fantasias e aparência, pode de fato ser visto como drag, ou como Butler também chama, “performance”. A “performance” deve mostrar o fato de que não há “essência interior sexual ou núcleo psicológico de gênero”. Se essa é uma estratégia revolucionária, então como ela geraria mudança? Isso não fica muito claro.

Então, como… engajar o próprio gênero como uma fabricação inevitável, fabricar gênero em termos que revelem qualquer reivindicação de origem, de interno, de verdadeiro e de real como nada além de efeitos de drag, cujas possibilidades subversivas devem ser reproduzidas repetitivamente para transformar o “sexo” do gênero em um sítio insistente de brincadeira política?

Aparentemente, o público do gênero como performance drag deve se dar conta de que gênero não é “real” ou “verdadeiro”. Mas o que ele faz com essa descoberta? Os homens e as mulheres heterossexuais voltarão correndo para casa e jogarão fora o gênero, depois de testemunharem um show de drag, proclamando ao parceiro que não existe isso de masculinidade e feminilidade? Isso não parece muito provável. Se gênero de fato fosse uma ideia, se a supremacia masculina só conseguisse continuar porque não se acenderam pequenas lâmpadas de compreensão da falsidade do gênero nas cabeças de homens e mulheres, então a estratégia de Butler poderia estar destinada ao sucesso. Mas ela tem um entendimento liberal e idealista da opressão de mulheres. A supremacia masculina não continua porque as pessoas não percebem que gênero é socialmente construído, por causa de um infeliz equívoco de que devemos, de alguma forma, aprender a corrigir. Ele continua porque os interesses de homens são atendidos assim. Não existe razão para que homens abram mão de todas as reais vantagens econômicas, sexuais e emocionais que a supremacia masculina lhes oferece porque eles viram que homens podem vestir saia. De maneira similar, a opressão de mulheres não consiste apenas de ter que usar maquiagem. Ver um homem em uma saia ou uma mulher usando gravata não será suficiente para desenredar uma mulher de um relacionamento heterossexual se, ao decidir se desfazer de sua opressão, ela sofre social, financeira e, provavelmente, fisicamente — em alguns casos com a perda da sua vida.

De acordo com aqueles que celebram brincar com gênero, não é apenas a suposição de um gênero que pode parecer incongruente (isto é, a feminilidade por um homem ou masculinidade por uma mulher) que é potencialmente revolucionária. Aparentemente, a performance do papel de gênero esperado também pode ser. Essa ideia tem sido presente na teoria gay masculina já há algum tempo. Comentadores gays masculinos, no que tange o desenvolvimento dos fenômenos do clone masculino e do homem de couro nos anos 70, discordaram acerca do potencial revolucionário desse desenvolvimento. Muitos teóricos gays ficaram compreensivelmente consternados. Eles têm visto a masculinidade gay como uma traição do princípio de liberação gay que buscava romper com os estereótipos de gênero e via a masculinidade como um conceito que era opressivo para mulheres. Outros têm argumentado que o homem gay masculino é revolucionário porque ele questiona o estereótipo do homem gay afeminado. Tem sido apontado que o potencial revolucionário do homem gay masculino pode não se realizar, porque a passabilidade faz com que não se perceba que o homem era gay e poderia-se apenas pensar que ele era masculino. Como, afinal de contas, alguém saberia? O argumento de que a masculinidade vestida por homens gays poderia ser politicamente progressista parece, no fim das contas, ser apenas uma maneira de buscar justificar o que alguns homens queriam fazer ou ao quê se sentiam atraídos. A motivação política foi inventada depois do fato, talvez porque alguns homens gays perceberam a natureza retrógrada da masculinidade que adotaram para terem “passabilidade”, para se sentirem poderosos ou para serem atraentes, e precisavam se tranquilizar.

O retorno ao gênero que tem ocorrido na comunidade de homens gays desde o fim dos anos 70 em termos de um entusiasmo renovado por shows drag e um novo estilo masculino tem seu análogo mais recente na comunidade lésbica. Foi apenas nos anos 80 que o retorno do gênero se tornou óbvio na comunidade lésbica com o fenômeno de uma encenação de papéis sexuais reabilitada e do lesbianismo hiperfeminino. Era conveniente que houvesse ideias sendo trabalhadas pelos Mestres do pós-modernismo que ofereceriam uma justificativa intelectual e que permitiriam que as objeções feministas fossem trocadas e ridicularizadas na academia. Judith Butler demonstra em Gender Trouble que a psicanálise antiquada sob a forma de um artigo de Joan Riviere de 1929 mais as declarações lacanianas sobre feminilidade como mascarada e paródia poderiam ser empregadas pelas novas teóricas lésbicas-e-gays de estudos culturais para apoiar a performance de feminilidade por lésbicas como uma estratégia política. Essa estratégia, em outros lugares, é chamada de “mimetismo”, embora essa palavra não se encaixe na análise de Butler, já que sugeriria que existe um original que pode ser imitado e, de fato, ela não usa essa palavra. Carol-Anne Tyler explica a ideia de “mimetismo” usando Luce Irigaray.

Ser um mímico, de acordo com Irigaray, é “assumir o papel feminino deliberadamente… para tornar ‘visível’, como efeito da repetição brincalhona, o que deveria continuar invisível…”. Encenar o feminino é “falar” ele ironicamente, para colocá-lo em itálico…. hiperbolizá-lo… ou parodiá-lo… No mimetismo, se “faz” ideologia para desfazê-la, produzindo conhecimento sobre isso: que o gênero e a orientação heterossexual que supostamente a ancora não são naturais e são opressoras.

Mas Tyler critica essa ideia. Ela aponta que, se todo gênero é mascarada, então deve certamente ser impossível distinguir a paródia do “real”. Não há real. Portanto, o potencial revolucionário se perderia.

É a ideia do mimetismo que reside por trás de parte do clamor de críticos culturais acerca da Madonna. Supostamente, Madonna deveria minar ideias da fixidez e da confiabilidade do gênero ao assumir a feminilidade como performance. Mimetismo requer que a feminilidade a ser assumida seja exagerada. Aparentemente, é assim que observadores inocentes vão saber que uma estratégia revolucionária está sendo usada. O grau exagerado de maquiagem ou da altura do salto revelaria que o gênero como performance estaria sob ataque. Cherry Smyth, expoente da política “queer”, conta que a roupa tradicional feminina pode ser revolucionária, ao discutir o trabalho da fotógrafa lésbica Della Grace:

Parte da iconografia é, de fato, roubada de mulheres trabalhadoras do sexo e da moda pós-punk, que injeta uma autonomia violenta no femme chic, fazendo o uso de uma mini-saia e de um body revelador virar vulgar e ameaçador, em vez de vulnerável e submisso.

Esse estilo é melhor personificado, afirma ela, pela “própria Madonna, que provavelmente é um dos exemplos mais famosos da transgressão queer”. Teóricas feministas que não são “queer” ou pós-modernas têm grande dificuldade em ver Madonna transgredindo qualquer coisa além do próprio feminismo, anti-racismo e políticas progressistas de maneira geral. bell hooks, a teórica feminista negra Americana, explica que Madonna obedece e explora as regras da supremacia branca masculina, ao invés de desafiá-las. Ela diz que mulheres negras não conseguem ver a mudança na cor de cabelo de Madonna para o loiro como “meramente uma questão de escolha estética”, mas emanando da supremacia branca e do racismo. em Truth or Dare: In Bed With Madonna, ela a vê usando a “posição de outsider” para “colonizar e se apropriar da experiência negra para deus próprios fins oportunistas, inclusive quando ela tenta mascarar seus atos de agressão racista como afirmação”. Ela aponta que Madonna, ao usar o tema da mulher inocente ousando ser má, “depende da produção contínua do mito sexual racista/sexista de que mulheres negras não são inocentes e nunca podem ser”.

hooks cita Susan Bordo no título de seu artigo como se dissesse que o potencial “desestabilizador” de textos só podem ser determinados em relação à “prática social de fato”. Se olharmos dessa maneira para o “potencial desestabilizador” do mimetismo, somos forçadas a reconhecer que existem muitos exemplos ao nosso redor o tempo todo, no transporte público, em festas do escritório, em restaurantes, exemplos de mulheres assumindo uma feminilidade exagerada. É difícil saber como diferenciar entre a feminilidade impensada, comum ou cultivada da feminilidade sofisticada como mascarada. Também tem um pouco de esnobismo envolvido. Há, claramente, uma distinção de valor sendo feita entre a escolha de mulheres em usar exatamente as mesmas roupas com base na sua ignorância e falta de iluminação ou se fizeram estudos culturais, leram Lacan e fizeram uma escolha deliberada e revolucionária de usar corpetes decotados de renda.

Por que existe tanta agitação em torno disso? É difícil acreditar que as teóricas lésbicas pós-modernas estejam falando sério ao verem o mimetismo e a encenação de papéis sexuais, de modo geral, como estratégia revolucionária. Mas a teoria permite que as mulheres que queiram usar gênero como fetiche para seus próprios fins, seja erótico ou tradicional, o façam com um presunçoso senso de justiça política. Brincar com o gênero e toda a parafernália tradicional de dominação e submissão, poder e impotência que a supremacia masculina já produziu parece divertido. Enquanto que, para uma geração de mulheres que cresceram nos anos 60, maquiagem e salto alto significava dor, custo, vulnerabilidade e um pobre senso de identidade, uma nova geração de jovens está nos dizendo que todas essas coisas são maravilhosas porque ela está escolhendo essas coisas. Existe uma nova geração que parece intrigada acerca de como conseguimos nos divertir sem tirar nossas sobrancelhas ou depilar as pernas. Enquanto isso, a construção de gênero parece continuar sem ameaças. Nós temos apenas o fenômeno de lésbicas unindo-se para ajudar a reforçar a fachada da feminilidade. Houve um tempo em que feministas lésbicas viam como tomada de consciência aparecer em público ou na televisão vestida de uma maneira que evitasse a feminilidade. Nós acreditávamos que isso mostraria a mulheres que uma alternativa à feminilidade estava disponível. Agora, os parodistas, mímicos e performistas nos dizem que uma lésbica aparecer vestida da maneira que se esperaria de uma mulher heterossexual extremamente feminina é mais perturbador para a supremacia masculina. É difícil entender o porquê. Aqueles com mais probabilidade de ficarem perturbados, certamente, são as feministas e as lésbicas que sentem-se completamente prejudicadas e até mesmo humilhadas por ver uma lésbica aparecer e falar ao mundo que também quer ser feminina.

Além do retorno do gênero, existe um outro aspecto da abordagem pós-moderna dos estudos lésbicos e gays que não parece ser uma estratégia revolucionária obviamente útil. É a incerteza radical acerca da identidade lésbica e gay. Teóricos homens e mulheres estão adotando a incerteza radical. Nomear e criar uma identidade eram vistos como uma tarefa política fundamental para os movimentos lésbicos e gays dos anos 70. Nomear era particularmente importante para feministas lésbicas, que estavam muito cientes das várias maneiras nas quais mulheres, em geral, eram desaparecidas da história, dos estudos e dos registros no momento em que se casavam e perdiam seus nomes. Sabíamos que era importante nos colocarmos no mapa e lutarmos para continuarmos nele. Era crucialmente necessário adotar e promover a palavra lésbica porque ela estabelecia para lésbicas uma identidade separada de homens gays. Feministas lésbicas no mundo ocidental, então, buscaram dar corpo a essa identidade. Nós estávamos construindo para nós mesmas uma identidade política consciente. Feministas lésbicas sempre foram construcionistas sociais radicais em sua abordagem do lesbianismo. Uma identidade lésbica que pudesse derrotar os estereótipos hostis e controladores de lésbicas e formar a base de nosso trabalho político era construído por meio da poesia, de trabalhos teóricos, nossas conferências, trabalho político coletivo cotidiano. É uma identidade historicamente específica. A identidade lésbica que está sendo construída atualmente por libertários sexuais e pela nação de teóricos queer é muito diferente. A identidade que está sendo escolhida e construída se encaixará nas estratégias políticas que estão sendo usadas.

Os teóricos lésbicos-e-gays pós-modernos tentam jogar ao mar qualquer conceito estável sobre identidade, ainda que a estabilidade seja temporária. Três preocupações políticas parecem basear esse esforço. Uma delas é a preocupação em evitar o essencialismo. Essa é uma preocupação que não parece particularmente relevante para feministas lésbicas, que estão bem cientes de que a identidade lésbica delas é uma construção social deliberada e claramente intencional. Mas essa é uma preocupação, particularmente, para teóricos homens gays que se deparam com uma cultura gay masculina muito mais ancorada nas ideias de uma identidade essencial do que aquela das lésbicas. A preocupação de homens gays com o essencialismo tem determinado que teóricos lésbicos-e-gays, de forma geral, se dediquem muito a essa questão. Como Richard Dyer expressa, em Inside/Out, a “noção do homossexual”

parecia navegar muito próxima aos ventos do tipo de etiologia biológica da homossexualidade que havia sido usada contra as relações de mesmo sexo e, ao sustentar um modelo do que somos inexoravelmente, para nos privar da prática política de determinar o que gostaríamos de ser.

A outra preocupação política subjacente ao desejo pela incerteza radical é a de evitar o etnocentrismo. Os radicalmente incertos sentiam que um conceito estável do que é uma mulher lésbica ou um homem gay estaria destinada a refletir as ideias de um grupo racial ou etnicamente dominantes e falharia em acomodar as diferenças consideráveis na experiência e nas práticas de pessoas de outras culturas. Como Dyer escreve:

O trabalho que procurava estabelecer a continuidade da identidade lésbica/gay ao longo do tempo e da cultura parecia estar impondo a maneira como a sexualidade lésbica/gay é para “nós” agora sobre a diversidade e as diferenças radicais, tanto do passado como dos “outros” (não-brancos, Terceiro Mundo), e muitas vezes omitindo as diferenças entre lésbicas e gays.

Dentro da liberação de mulheres e do feminismo lésbico em geral, tem sido feito um trabalho considerável por mulheres negras e de minorias étnicas para afirmarem suas próprias identidades diferentes, sem desestabilizar radicalmente a ideia de que lésbicas existem. Esse trabalho tem sido realizado por lésbicas negras, judias, chicanas, asiáticas e indígenas, todas as quais têm afirmado uma identidade lésbica. Essa identidade em comum provavelmente surge, sim, da cultura urbana ocidental, e não necessariamente se transferiria para fora dessa arena. Lésbicas indígenas na Austrália, por exemplo, têm questionado a relevância de uma palavra baseada em uma ilha grega para a identidade delas e têm apontado que amante de mulheres, na cultura indígena tradicional, não abre espaço para uma identidade lésbica urbana. Mas uma identidade reconhecível para lésbicas organizadas em culturas urbanas ocidentais tem parecido ser algo importante para lésbicas políticas de maneira geral. O fato de que a identidade possa não fazer sentido para povos indígenas ou povos não-urbanos em geral não nega a sua importância como uma ferramenta organizativa em seu próprio contexto.

Outro motivo de desconfiança acerca da identidade lésbica ou gay foi baseada nas noções foucaultianas de “a própria operação de poder por meio da regulação do desejo que as políticas lésbicas/gays deveriam se opor”. Dyer sugere que, se as categorias de homossexualidade fossem inventadas como ferramentas de controle social, então deveríamos tomar cuidado com as maneiras nas quais o nosso uso delas poderia contribuir com essa regulação. É bom e útil ser lembrada de como deveríamos interrogar nossa prática política e até mesmo aquilo que tomamos como politicamente garantido, como o fato de que nos denominamos lésbicas, para nos certificarmos de que não caímos em práticas politicamente inúteis e até prejudiciais. Mas quando olhamos para a maneira como a incerteza radical é praticada na escrita lésbica, então podemos nos perguntar se essa faxina geral não foi longe demais. Escritores pós-modernos são enfáticos na importância de tornar conhecida a sua posição de sujeito, para que não sejam vistos como se pretendessem produzir universalidade e objetividade. Feministas lésbicas, muito ignorantes da teoria pós-moderna, desenvolveram suas próprias versões disso em newsletters, nos anos 80, nas quais elas identificariam a si mesmas em notas biográficas como “Ex-het. classe média, gorda, fem, Libran” e por aí vai, mas elas tendiam a estar certas de todos esses aspectos de suas identidades. Elizabeth Meese nos dá um exemplo da versão pós-moderna da incerteza radical:

Por que é que as lésbicas se parecem como uma sombra — uma sombra com/nas mulheres, com/na escrita? Uma forma contrastada em um teatro de sombras, levemente sem forma, as bordas borradas pelas mudanças no ambiente, nos lençóis nos quais uma peça é projetada. O sujeito lésbica não é tudo o que sou e está no todo que sou. Uma sombra de quem sou que atesta que estou aqui, nunca estou sem/fora (d)essa lésbica. E estamos sempre aparecendo, desse jeito e daquele, em um lugar e em outro. As sombras sozinhas, esqueça o corpo, faz uma dança tão complexa em nossa luta para fazer sentido.

Muitas partes da escrita pós-moderna sobre temas lésbicos começam com várias páginas com esse tipo de introspecção sobre a identidade lésbica da escritora. De maneira similar, quando acadêmicos pós-modernos discursam, eles tendem a gastar os primeiros vinte minutos questionando sua própria posição de sujeito, deixando pouco espaço para o conteúdo pelo qual a audiência, pacientemente, espera. Pode ser que muitas leitoras lésbicas nunca tenham se sentido como uma sombra, ou sentido que precisaram lutar muito para fazerem sentido, mas na escrita feminista pós-moderna há muita angústia sobre o quanto é difícil falar ou escrever. Existe uma angústia sofrida do artista aqui, que muitas de nós que apenas buscamos nos expressar tão simplesmente e frequentemente quanto pudermos não podemos bancar em nossa luta política. Judith Butler começa seu escrito em Inside/Out com uma dessas introspecções angustiadas sobre quem ela está sendo, quando é convidada para discursar como lésbica.

De início, considerei escrever um tipo diferente de ensaio, um com um tom filosófico: o “ser” de ser homossexual. A perspectiva de ser qualquer coisa, mesmo que pelo pagamento, sempre produziu em mim certa ansiedade, pois “ser” lésbica parece ser mais do que uma simples determinação de me tornar quem ou o que eu já sou. E dizer que isso é “parte” do que sou não ameniza, de nenhuma maneira, para mim, a ansiedade. Escrever ou falar como uma lésbica parece uma aparência paradoxal desse “eu”, que não parece verdadeira ou falsa. Pois é uma produção geralmente em resposta a um pedido para sair do armário ou escrever em nome de uma identidade que, uma vez produzida, às vezes funciona como um fantasma politicamente eficaz. Não estou tranquila com “teorias lésbicas, teorias gays”, porque… categorias identitárias tendem a ser instrumentos de regimes regulatórios… Isso não quer dizer que eu não aparecerei em ocasiões políticas sob o signo de lésbica, mas que eu gostaria de ter permanentemente incerto o quê, precisamente, esse signo quer dizer.

Acho esse tipo de escrita politicamente preocupante. Butler usa a palavra homossexual na primeira frase, aplicando-a a si mesma, o que não é algo que a feminista lésbica média se sentiria capaz de fazer. A palavra homossexual tem conotações ainda mais especificamente masculinas do que a palavra gay, para a maior parte das lésbicas que se tornaram politizadas nos anos 70e que não veriam a si mesmas como estando na mesma categoria de homens gays que pudesse ser coberta por uma palavra única. Isso sugere que Butler é uma das novas teóricas lésbicas-e-gays que escolheu abandonar uma política lésbica separada. O uso de palavras específicas pode nos ajudar a localizar Butler politicamente, mas é sua grande angústia sobre onde ela localiza a si mesma que forma um problema para as políticas lésbica ou gay. Não é animador ou inspirador ser confrontado com a incerteza radical, mas isso não é o suficiente como crítica. O que precisa ser questionado, e muitas feministas heterossexuais, escritoras negras, bem como lésbicas estão começando a questionar, é se é útil, politicamente, tornar-se tão duvidosa acerca da palavra lésbica ou outras categorias políticas como mulher ou negra, quando os grupos oprimidos que usam essas categorias identitárias estão apenas começando a criar espaços para si historicamente, culturalmente e na academia.

A ideia em torno do questionamento pós-moderno em relação às posições de sujeito era a de que membros de grupos dominantes deveriam reconhecer seus vieses, para que leitores pudessem reconhecer mais facilmente certos escritos como sendo parte de sistemas regulatórios. Até aí, tudo bem, mas não são os membros de grupos dominantes que têm se aproveitado dessa oportunidade de serem radicalmente incertos, e não há razão para esperar que eles desejem fazer isso. Não são os vice-reitores das universidades tradicionais que iniciam as suas falas com vinte minutos de agonização acerca de suas posições subjetivas e do direito de dizerem o que estão prestes a dizer. Acadêmicos homens, heterossexuais e brancos não estão aproveitando essa oportunidade em massa. Parece ser principalmente mulheres, lésbicas, gays e membros de grupos étnicos minoritários, de forma geral, que estão se sentindo pressionados para serem radicalmente incertos. Enquanto as certezas dos regimes regulatórios permanecem a postos, pode ser que o melhor meio político de combatê-los seja ter alguma certeza de nossa parte acerca de quem somos e do que estamos fazendo. Pode ser que o requerimento de ser incerto esteja apenas alimentando a dificuldade geral que os oprimidos têm em se sentirem confiantes e assertivos em sua oposição à maquinaria dominante criadora de mitos. Pode estar ajudando a nos sentirmos impotentes.

Diana Fuss devota um capítulo inteiro à questão de políticas identitárias lésbicas e gays em seu livro Essentially Speaking. Ela sugere que teóricas lésbicas têm sido mais comprometidas do que homens gays à ideia de uma identidade essencialista.

Em geral, a teoria lésbica corrente está menos disposta a questionar ou a se desfazer da ideia de uma “essência lésbica” e de uma política identitária baseada nessa essência compartilhada. Teóricos gays homens, por outro lado, seguindo a liderança de Foucault, têm sido rápidos em endossar a hipótese do construcionismo social e em desenvolver análises mais detalhadas da construção histórica das sexualidades.

Isso será uma surpresa para as leitoras feministas lésbicas. O oposto tem sido nossa experiência cotidiana. Como professora, tenho percebido, repetidamente, que a ideia de que a homossexualidade masculina é construída socialmente é um anátema para alguns estudantes gays homens e difícil de aceitar para muitos mais, mas não é difícil para lésbicas. Muitas lésbicas, afinal, escolheram amar mulheres por razões políticas, com frequência depois de meia vida sendo esposa e mãe, na qual elas nunca imaginaram se sentirem atraídas por mulheres. Homens gays não têm essa experiência com frequência. É difícil encontrar um que diga que sua preferência sexual é política e o resultado de uma escolha consciente de abandonar mulheres e a heterossexualidade. Talvez, então, Fuss queira dizer que escritoras lésbicas não têm promovido a ideia de construção social, embora a maior parte de lésbicas tenha aceitado ela a nível de experiência. Mas isso também não parece uma sugestão razoável. Existe uma literatura bastante extensa sobre lesbianismo político e a ideia de que a heterossexualidade é uma instituição política, construída como a fundação da opressão de mulheres. Mas Fuss ignora essa literatura, a não ser mencionando Adrienne Rich em várias páginas, talvez ela nunca tenha visto, embora muito seja efetivamente ensinado em cursos de estudos de mulhere.s Ela explica que lésbicas subscrevem ao essencialismo de forma mais entusiasmada do que homens gays porque, como mulheres, estamos mais às margens, e a certeza de uma identidade essencialista, portanto, parece mais importante para nossa segurança. Isso realmente parece como o oposto da questão verdadeiramente interessante de ser feita, que é porque homens gays que têm menos necessidade de uma identidade essencialista, em termos de sua segurança, aderem de maneira tão mais tenaz a essa ideia.

De acordo com Fuss e outros teóricos lésbicas-e-gays, é Foucault que ensinou o mundo que a sexualidade é socialmente construída. Particularmente, foi ele que nos ensinou que as identidades sexuais são experimentadas de maneiras diferentes em períodos históricos diferentes. Então, especula Fuss, pode ser por causa da maior necessidade de lésbicas em aderirem politicamente ao essencialismo que tem existido uma “escassez de análises foucaultianas sobre a sexualidade lésbica, comparadas à pletora desses estudos acerca do sujeito homem gay”. Essa é uma afirmação particularmente surpreendente. Deixando de lado a imprecisão de atribuir essencialismo à teoria lésbica, existe outro problema aqui. Por que as lésbicas deveriam fazer análises foucaultianas? Por que elas deveriam usar, para descrever as experiências delas, o trabalho de um homem gay que não notou verdadeiramente as mulheres — muito menos as lésbicas — em sua teoria e cujos insights foram antecedidos consideravelmente pelo feminismo lésbico? Feministas lésbicas, particularmente Lillian Faderman, têm feito seu trabalho próprio e inovador sobre as mudanças e os desenvolvimentos do amor entre mulheres na história. Mas Fuss não cita Faderman.

Como ela consegue ignorar o feminismo lésbico e acreditar que lésbicas não teorizam, se não estiverem se encaixando nos conceitos inadequados de um homem gay? Deve ser porque o ponto de partida de Fuss não é a teoria lésbica ou o feminismo lésbico. Ela percebe que a teoria gay masculina não compreende completamente o lesbianismo. Por exemplo, quando fala da importância de teorias construcionistas da identidade lésica e gay, ela sugere que elas ajudarão a teorizar sobre as diferenças entre lésbicas e homens gays, mas não parece considerá-las tão grandes.

…as teorias da invenção nos permitem fazer importantes distinções entre homossexuais masculinos e lésbicas, dois grupos que são confundidos com frequência na pesquisa de minorias sexuais (pesquisa visivelmente enviesada em favor do homem gay), mas que, na verdade, não são construídos da mesma maneira.

Pode-se até desejar ser um pouco mais forte que isso e afirmar que lésbicas e homens gays foram, na verdade, construídos de maneiras muito diferentes, mas Fuss, sendo resoluta em sua abordagem lésbica-e-gay, prefere ser mais branda e experimental. É interessante, considerando que teóricos pós-modernos vêem a si mesmos como incomparáveis em sua atenção à “diferença”, que eles às vezes se revelem muito tímidos em reconhecer diferenças como as que são construídas politicamente entre homens e mulheres. O ponto de partida de Fuss é a teoria gay masculina e homens pós-modernos em geral. Ao mesmo tempo em que não cita Faderman, ela tem dezenove trabalhos de Derrida em sua bibliografia.

Parece ter sido o trabalho dele que deixou algumas teóricas lésbicas e feministas confusas acerca do essencialismo. Ela nos diz sobre os “esforços recentes [de Derrida] em desconstruir a ‘essência’”. Está claro que a palavra essencialismo não está sendo usada no sentido tradicional, nesses escritos pós-modernos. Muitas detratoras da teoria feminista radical o acusam, com pouca ecidência, de ser essencialista no sentido antiquado de determinismo biológico. Ativistas anti-pornografia são acusadas, por exemplo, de acreditarem que a sexualidade masculina e feminina são essencialmente diferentes. Mas Fuss não usa a palavra nesse sentido. Ela, como outros teóricos pós-modernos, tendem a usar a palavra para descrever qualquer política baseada no conceito de identidade, construída ou não, ou qualquer política que acredite que existe qualquer similaridade entre membros de uma classe na qual uma teorização ou ação possa se basear. É um conceito de essencialismo direcionado com tanta frequência a qualquer um que acredite ou sugira ação política, que algumas ativistas feministas passaram a acreditar que a palavra é apenas um meio de dizer que a ação política é vulgar. Pode ser que os pós-modernos tenham cometido verbocídio desse termo e que ele não possa mais ser usado de maneira útil.

As lutas que as teóricas como Butler e Fuss estão travando com conceitos como gênero, identidade e essência surgem dos trabalhos de suas autoridades masculinas. Essas teóricas lésbicas não estão situadas dentro das políticas lésbicas ou das feministas, mas estão buscando forjar uma política lésbica-e-gay unificada baseada na teoria gay masculina. Elas criticam a política feminista lésbica, isso quando sequer a menciona, por não estar à altura de seus mestres pós-modernos masculinos e lutam para encaixar perfeitamente a política lésbica nos bolsos dos gays pós-modernos. Enquanto isso, teóricas feministas lésbicas estão engajadas em um estranho teatro de sombras, buscando criticar essas intrusões no palco de uma teoria claramente inadequada, mas sem se parecer com suas origens. Poucas de nós leram dezenove trabalhos de Derrida, e muitas não vão querer ler, mas é esperado que nós lutemos para responder às questões dele, introduzidas por suas seguidoras mulheres.

Eu gostaria de sugerir que, não importa o quão ousados os teóricos pós-modernos se considerem, eles, na verdade, estão apenas passando um brilho intelectual da moda sobre o bom e velho liberalismo e individualismo. Um bom exemplo disso é o efeito que a exposição à teoria pós-moderna pode ter sobre a análise política objetiva a respeito da pornografia. Kobena Mercer é uma ex-membro do Gay Black Group de Londres, e agora ensina História da Arte na University of California, em Santa Cruz. Enquanto participou do Gay Black Group, ele usava os insights de ativistas feministas anti-pornografia para criticar o trabalho do fotógrafo gay branco Robert Mapplethorpe. Muito do trabalho de Mapplethorpe focava na nudez de homens negros. Mercer interpretou a foto intitulada “Man in a Polyester Suit”, que mostrava “o perfil de um homem negro cuja cabeça estava cortada — ou “decapitada”, poderia-se dizer — segurando seu pênis semi-intumescido para fora da abertura de sua cueca” como perpetuador do “estereótipo racista de que, essencialmente, o homem negro não é nada além de seu pênis”. Ele viu tais fotos como propagadoras do “fetichismo racial”, uma “idealização estética da diferença racial que meramente inverte e reverte o eixo binário do discurso colonial”. Então, ele afirma que soube de leituras conflitantes do trabalho de Mapplethorpe em decorrência de ter se familiarizado com a teoria pós-estruturalista. De fato, uma vez dentro da academia, e ele agora é um acadêmico, não é fácil sustentar posicionamentos que possam ser vistos como vulgarmente políticos. As ideias dos estudos culturais pós-modernos o fizeram perceber:

A variedade conflitante de interpretações acerca do valor do trabalho de Mapplethorpe significa que o texto não comporta um significado singular e unívoco, mas está aberto a várias leituras concorrentes.

Ele decide que a questão sobre se a nudez masculina negra de Mapplethorne “reforça ou enfraquece mitos racistas acerca da sexualidade negra” é “impossível de ser respondida” devido ao argumento da “morte do autor” na teoria pós-estruturalista. Ele, agora, interroga sua própria posição subjetiva enquanto vê as fotografias e se pergunta se “minha raiva também estava embaralhada com sentimentos de ciúmes, rivalidade ou inveja” a “raiva e inveja” sendo os efeitos de sua “identificação tanto com o objeto quanto com o sujeito do olhar”. A crítica cultural dessa espécie depende do indivíduo. É apenas uma opinião — e pessoas têm diferentes opiniões. “Grande parte depende do leitor e da identidade social que ela ou ele traz para o texto”. Mercer tornou-se radicalmente incerto e agora se desculpa por seu posicionamento anterior, claramente antirracista, aobre Mapplethorne, assim como temos visto muitas lésbicas fazerem acerca de seu envolvimento constrangedor com o feminismo, anteriormente, no mesmo livro.

Outro exemplo da maneira como a fala pós-moderna serve para esvaziar o sentido político é a propaganda que se passa por conferência chamada “Forças do Desejo” no prestigioso Centro de Pesquisa em Humanidades na Universidade Nacional Australiana em Canberra, em junho de 1993.

As questões centrais aqui serão o exame da sexualidade sem a dominação de um modelo mestre, e a estruturação e reestruturação do desejo. Palestrantes serão convidados a abordar uma variedade de tópicos, tais como: múltiplas sexualidades como práticas e estilos de vida além dos modelos dominantes, investidos na sexualidade reprodutiva; os custos de sustentar tais modelos; a diversidade da sexualidade — masoquismo, sadismo, perversões, heterossexualidadeS, sexualidades gays; sexualidade normativa e as possibilidades e propósitos da resistência à e transformação dessas normas; conhecimentos como implicados nas práticas sexuais — a erótica da produção de conhecimento, o desejo por conhecimento; as interações da sexualidade, conhecimento, poder e violência.

Pode ser que leitoras feministas lésbicas já estejam se sentindo confusas sobre como as análises delas poderiam se encaixar aqui. De fato, lésbicas não são mencionadas. Elas parecem ter desaparecido nas “sexualidades gays”. Quantas dessas existem? As variedades da sexualidade começam com masoquismo e sadismo e agora parecem incluir quaisquer coisas especificamente igualitárias. A crítica feminista lésbica da heterossexualidade como instituição não parece ser bem-vinda, já que, nesse modelo, temos apenas “heterossexualidades”, essa forma plural, de alguma forma, não se presta a essa análise. Os plurais têm aparecido em todo tipo de coisa, como seria de se esperar de uma certa abordagem pós-moderna que busca cobrir toda eventualidade com plurais que acabam excluindo lésbicas e feministas e muito do que se poderia chamar de análise política. Em favor da “diferença”, tudo tem sido homogeneizado. Eu sempre me pergunto como os plurais e os singulares são decididos. Por exemplo, existe masoquismo, sadismo, desejo e poder no singular, mas todo o resto no plural. Existe uma política aqui, claro, e até mesmo, quem sabe, um “modelo mestre”. Suspeito que a política envolvida é do libertarianismo sexual, das minorias sexuais, a política hegemônica gay masculina do momento. Pode ser que “sexualidades gays” incluam pedofilia, transsexualismo e por aí vai, todas representadas como, de alguma maneira, iguais ao “lesbianismo”, se é que o lesbianismo se encaixa aqui em algum lugar. Não parece existir nenhuma feminista radical ou revolucionária na lista de pesquisadores ou palestrantes convidados. Mas eles incluem Gayle Rubin, proponente do sadomasoquismo lésbico e do transsexualismo lésbico butch; Jeffrey Weeka, um historiador gay foucaultiano; Carol Vance, uma teórica lésbica-e-gay libertária; e Cindy Patton, que conhecemos no Capítulo 2, lamentando a seriedade dada por feministas à questão do abuso sexual. Certamente, deve ser difícil para sadomasoquistas, habitantes das “margens sexuais” como Rubin, sustentar a própria ousadia, quando são convidadas e financiadas por uma instituição prestigiada dessa maneira.

A teoria lésbica e gay pós-moderna desempenha a útil função de permitir que aqueles que desejam empregar as ferramentas e armadilhas do sexismo e do racismo se sintam não apenas justificados, mas também revolucionários ao fazê-lo. A encenação de papéis sexuais lésbica, sadomasoquismo, masculinidade gay, drag, o mimetismo de Madona, o uso que ela faz de homens negros e da iconografia negra, o estereótipo sexual racista de Mapplethorpe, podem ser usufruídos para todo prazer e lucro que oferecem, em uma cultura de supremacia masculina na qual a desigualdade de poder é vista como tudo o que o sexo é e pode ser. O gozo no status quo é, então, chamado de “paródia” para que possa ser resgatado por intelectuais que poderiam, em outra situação, se sentir ansiosos acerca da excitação que sentem. Para esses teóricos pós-modernos lésbicas-e-gays que não têm interesse em assumir seus prazeres dessa forma, as ideias de incerteza radical e da natureza Utópica ou essencialista de qualquer projeto de mudança social oferecem um suporte teórico para um liberalismo e individualismo cavalheiresco.

--

--