A Heresia Lésbica — Sheila Jeffreys

Carla Gomes (@carlahenriqueg)
32 min readApr 17, 2024

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Capítulo 4 — A Lésbica Essencial

Ativistas da liberação gay e feministas lésbicas nos anos 1970 se opuseram à ideia de que a orientação sexual fosse biologicamente determinada. Os anos 60 e 70 foram as grandes décadas do construcionismo social. Teóricos sociais se opuseram vigorosamente aos argumentos biológicos sobre a inferioridade racial, diferenças de gênero e adoecimento mental. Era reconhecido que explicações biológicas forneciam a base científica para uma engenharia social conservadora. Argumentos biológicos, argumentos da natureza, poderiam ser usados para afirmar como correta e inevitável a subordinação de mulheres, a desigualdade racial, a hegemonia heterossexual e a drogadição e institucionalização de pessoas em sofrimento mental. Nos anos 80, a confiança no construcionismo social foi abalada pela adesão de algumas lésbicas e homens gays à nova onda de determinismo biológico para explicar a orientação sexual. Algumas teóricas lésbicas chegaram a começar a afirmar que os papéis butch/femme e a masculinidade e a feminilidade em suas formas estereotipadas eram naturais, até mesmo inevitáveis, para lésbicas.

A crença na biologia parte, principalmente, de homens gays. Isso talvez não devesse surpreender, uma vez que ativistas gays não aderiram ao slogan “Qualquer homem pode ser gay”. A política tradicional dos homens gays continuou a se apoiar na ideia de que a homossexualidade deveria ser tolerada porque homens gays não conseguiam não ser gays. Eles eram uma minoria biológica oprimida ou, se a biologia não fosse a culpada, então havia pelo menos “um certo algo” que tornava os homens gays inevitavelmente diferentes. Lésbicas, com frequência, chocavam-se ao descobrirem o quão profunda era a crença de homens gays na determinação biológica, mesmo entre aqueles que, em outros tópicos, eram politicamente progressistas. Quando eu lecionava uma aula de estudos lésbicos e gays, no início dos anos oitenta, percebi que os estudantes gays rapidamente expressavam alguma crença na biologia como causa da homossexualidade. A maioria das estudantes lésbicas expressavam a completa rejeição da ideia. As lésbicas, com muita frequência, haviam estado em relações heterossexuais, foram esposas e eram mães, e não tinham pensado na possibilidade de amar mulheres até ter se passado muito tempo desde a juventude. Uma explicação biológica não faria sentido de acordo com suas experiências e políticas.

A diferença considerável acerca da determinação biológica entre ativistas gays e feministas lésbicas ficou evidente na campanha no Reino Unido contra a Seção 28 do Local Government Act 1988. Porta-vozes gays proeminentes foram à televisão argumentar que a emenda contra a “promoção da homossexualidade” era um absurdo porque a homossexualidade era inata e não poderia ser promovida. Ativistas lésbicas ficaram perplexas. Isso era o oposto da política feminista lésbica e, julgando pelo debate da emenda na Casa dos Comuns, parecia que era precisamente o esforço lesbofeminista em promover o lesbianismo que estava causando o alarde nos legisladores conservadores. Parecia haver uma diferença política fundamental nesse ponto, e embora alguns ativistas gays fossem críticos dessa posição biologicista, eles não estavam em evidência.

Em 1987, houve uma conferência de estudos lésbicos e gays em Amsterdã cujo tema era “Essencialismo versus construcionismo social”. Essa parecia ser uma controvérsia urgente para aqueles que planejaram a conferência. A introdução aos artigos selecionados afirmava: “A longo de uma década tem crescido a controvérsia entre acadêmicos gays e lésbicas centrada nas duas teorias científicas rivais e suas implicações para a homossexualidade: essencialismo e construcionaismo”. Feministas lésbicas ficaram perplexas que uma questão que elas pensavam ter sido respondida vinte anos antes pudesse gerar tanto interesse em 1987. O fato de que uma questão como essa pudesse ser vista como importante o suficiente para que se organizasse uma conferência inteira em torno dela sugeria que uma crença no essencialismo devia estar firme e forte em algum lugar fora da comunidade lésbica feminista. Teóricas lésbicas feministas ainda estavam ocupadas desafiando a instituição da heterossexualidade, sugerindo que todas as mulheres poderiam fazer a escolha de serem lésbicas se não fosse pelas restrições impostas pela heterossexualidade compulsória. Contemplar se elas eram essencialmente lésbicas era uma não-questão.

Nos anos noventa, uma reversão do construcionismo social na comunidade gay continua em ritmo acelerado. Em 1991, as descobertas científicas de Dr Simon LeVay, caracterizado como “ativista gay”, foram publicadas nos EUA. LeVay estudou o cérebro de homens gays que morreram de AIDS e de homens que afirmaram não serem gays que morreram da mesma causa. Ele descobriu que uma pequena área do hipotálamo tinha, em média, o dobro do tamanho em homens heterossexuais quando comparado com cérebros de mulheres heterossexuais e homens homossexuais. Ele sugeriu que variações nos níveis hormonais antes do nascimento programava o hipotálamo para a heterossexualidade ou para a homossexualidade. Desde então, outro estudo na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia aparentemente confirmou as descobertas dele. LeVay vê seu trabalho como muito positivo para acabar com a discriminação contra gays. Ele sempre acreditou que a homossexualidade era biologicamente determinada e decidiu provar isso para que a discriminação anti-gay pudesse ser combatida com a alegação de que gays estão condenados por natureza ao seu comportamento e devem ser tratados com a compaixão de deveria ser destinada a qualquer grupo que não tem culpa de seu próprio destino. Esse é um argumento antigo que remonta à virada do século. É uma ideia difícil de matar. Mas ela não se encaixa na experiência lésbica ou na teoria lésbica feminista. LeVay ainda não teve acesso aos cérebros de lésbicas, mas está convencido de que encontrará cérebros que se parecem com o de homens heterossexuais na área crucial.

É relevante que LeVay também acredite que a biologia seja responsável pelas diferenças de comportamento entre homens e mulheres. Ele pensa que mulheres são mais competentes na verbalização do que homens e que homens são mais competentes na espacialização que mulheres em função das diferenças nos cérebros. Ele consegue associar essas diferenças nos cérebros com o fato de haver maior incidência de canhotos entre homens gays do que entre homens hetero. LeVay está claramente preparado para acreditar que qualquer diferença nos estereótipos entre homens e mulheres é resultado da biologia, sem qualquer evidência além de seus palpites. De maneira mais preocupante, ele acredita que “o desejo sexual de homens e mulheres são biologicamente determinados”. Uma contribuição fundamental da teoria feminista é que o comportamento masculino é aprendido e não natural. Caso contrário, não haveria esperança de libertação das mulheres da violência sexual. A sabedoria de LeVay sugere o oposto:

Em geral, em todo o reino dos mamíferos, os homens são mais promíscuos que as mulheres. Machos têm o potencial de gerar um número ilimitado de descendentes. É fácil para eles inseminar uma fêmea, então é do interesse deles ser o mais promíscuos possível. Para uma fêmea é bem diferente… Não há dúvida em minha mente de que essa caraterística é biologicamente determinada. Existe algo nos cérebros dos machos e das fêmeas que os levam a agir assim. Agora, se você lha para homens gays e lésbicas, esse traço não está invertido em relação ao sexo. Na verdade, esse traço em homens gays não está mais restrito pela falta de desejo das mulheres — então o céu é o limite. A maior parte dos homens hetero não fazem tanto sexo quanto gostariam porque mulheres não deixam.

LeVay nos mostra que os argumentos biológicos acerca do “gene gay” pode levar diretamente aos argumentos biológicos que justificam a opressão de mulheres.

É preocupante que a teoria de LeVay tenha sido tratada entusiasticamente por parte da imprensa gay e pelo menos com uma curiosidade simpática pelo restante. O retorno do essencialismo está a toda força, aparentemente. Feministas têm sido particularmente hostis às explicações do determinismo biológico porque a própria ideia do feminismo, a possibilidade de seu nascimento, depende da luta contra a ideia de diferenças psicológicas entre os sexos serem biologicamente construídas. Depois de uma boa base nessa luta, não é possível que feministas lésbicas sejam otimistas em relação às explicações biológicas da homossexualidade. Homens gays podem ser, porque a liberdade deles como homens não depende, na mesma medida, do combate ao biologicismo.

A “diferença” de mulheres ou a feminilidade tem sido explicada na teoria feminista lésbica como uma invenção masculina, e a sujeição de mulheres à feminilidade como uma projeção das fantasias masculinas sobre mulheres, ou como uma separatista coloca:

Homens projetam sobre as mulheres todas as suas próprias deficiências (covardia, falta de lógica, futilidade, desonestidade, traição, mesquinhez) e empurram sobre as mulheres uma gama de maneirismos e estilos femininos inventados por homens, que encorajam fraqueza, dependência, submissão e comibilidade em geral.

A feminilidade tem sido experimentada por feministas lésbicas simplesmente como uma restrição brutal da liberdade, como tortura do corpo. Lésbicas têm sido mais livres para abandonar seus ditames e expressar total rejeição. As mesmas autoras fazem a feminilidade soar deveras brutal.

…devemos acreditar que é natural querer andar com sapatos de salto, rosto mascarado com produtos químicos fedorentos e sinistros, unhas com garras sangrentas, corpos submetidos a cirurgias plásticas, depilação e dieta, envolvidos em vestidos reveladores, vozes anormalmente finas, gestos “fofos” e agressivamente sedutores e mentes focadas em agradar homens a todo custo.

Feministas heterossexuais também demoliram efetivamente o mito da feminilidade, mais notavelmente Naomi Wolf em O Mito da Beleza. Ela, assim como outras teóricas feministas antes dela, mostra como as indústrias da moda e da beleza levam mulheres a causar grave dano aos seus corpos e até a morrerem de fome por meio de transtornos alimentares. O que é surpreendente, então, é que a feminilidade esteja sendo reintroduzida, atualmente, na cultura lésbica como uma nova e revolucionária possibilidade erótica.

Nos anos setenta, feministas lésbicas, eu inclusa, usaram broches que diziam “Qualquer mulher pode ser lésbica” e acreditávamos nisso. Acreditávamos não só com boas bases políticas, como nossa resistência às teorias biologicistas de gênero ou comportamento sexual, mas porque foi a experiência de muitas de nós. Milhares de mulheres que não consideravam o lesbianismo uma possibilidade abandonaram homens e destinaram todas suas energias emocionais e sexuais a outras mulheres, e continuam comprometidas até hoje. A ideia do lesbianismo político, como esse fenômeno foi chamado, foi controversa na época. Lésbicas políticas eram acusadas por algumas de não serem lésbicas “de verdade”, já que elas eram vistas como se estivessem recorrendo a mulheres por motivos políticos, e não por uma determinação da vida inteira. Mas nenhuma lésbica feminista poderia imaginar estar argumentando que lésbicas e mulheres heterossexuais fossem duas categorias biológicas distintas.

Joan Nestle, a principal propagandista da nova encenação lésbica de papéis sexuais, afirma categoricamente “penso que a frase toda mulher é uma lésbica em potencial não é mais útil”. Ela afirma que era apenas um “recurso retórico” e que agora é tempo de as mulheres lésbicas e heterossexuais simplesmente reconhecerem suas “escolhas” diferentes. Lésbicas agora devem “parar de fazer bullying com mulheres para que assumam postura sobre sexo, abandonar a suposição de que apenas Lésbicas fazem escolhas”. O bullying que ela tem em mente provavelmente compreende o excitante trabalho teórico de lésbicas feministas como Adrienne Rich e Monique Wittig, que analisam a heterossexualidade como uma instituição política. Um novo determinismo que reifica as categorias sexuais do sistema de supremacia sexual masculino se infiltrou aqui, sob a retórica da escolha. É dos pornógrafos da nova encenação de papéis, dos terapeutas da encenação de papéis, que o novo essencialismo flui. Argumentei aqui que isso não é surpresa alguma, porque na raiz de uma crença na encenação de papéis sexuais está, inevitavelmente, uma fundação essencialista.

Feminilidade e masculinidade retornaram à comunidade lésbica no contexto da reabilitação da encenação de papéis sexuais no início dos anos oitenta. Embora existam lésbicas que não tenham se afetado com esse desenrolar da história, a minimização do fetichismo de gênero nos anos sessenta e o impacto do feminismo possibilitaram uma liberação para muitas daquelas lésbicas que anteriormente haviam usado desses papéis. Julia Penelope é uma teórica lésbica que escolheu abandonar a encenação do papel butch. Ela ficou horrorizada em ver a revalidação e, em 1984, ela atacou a nova encenação de papéis sexuais de uma firma e clara perspectiva feminista radical.

O impulso de reviver os rótulos “butch” e “femme” e injetar uma respeitabilidade política ao seu significado (embora tardiamente) falando sobre “intuição” e “poder” é a manifestação lésbica da retaliação contemporânea da direita, encorajada pela nostalgia dos anos 50 e a ilusão de segurança que temos ao voltar para aquilo que imaginamos ser “dias melhores” (geralmente porque não os vivemos) e falando em “reivindicar nossa herança”.

Como Penelope aponta, a nova encenação de papéis sexuais foi legitimada com apelos à história lésbica, geralmente aos anos cinquenta.

Outra lésbica que abandonou o papel de butch explica que ela definia a si mesma como butch nos anos 50 e que aspirava ser alguém que via femmes como “muito frescas ou inadequadas para serem butch”. Ela fica impressionada que qualquer lésbica, hoje em dia, possa “alegar ignorância acerca dos elementos de ódio à mulher que permeavam as identidades butch-femme tradicionais”.

É fácil sentir nostalgia pelos bons e velhos, maus velhos tempos… Há uma emoção em conquistar. Há uma emoção em dominar alguém, seja literal ou figurativamente. Mas, para mim, esses antigos papéis eram terrivelmente paralisantes e levou um longo tempo para eu me livrar deles.

Ela explica que a rigidez dos papéis foram aliviados pelo movimento “hippie” dos anos 60, que permitiu que homens usassem miçangas e cabelos longos. Mas o que ela descreve como a “grande virada de chave” veio com o Movimento de Liberação das Mulheres, por meio do qual ela aprendeu a “combinar força com sensibilidade e a ampliar nossos conceitos de sexualidade e de sensualidade”. Ela conclui:

A essa altura, parece loucura comprometer esse ethos pela emoção barata das jaquetas de couro pretas e vestidos de boneca… Nós não temos mais qualquer desculpa para deixar a cultura punk popular definir por nós o que é sexy, o que é romântico, pelo quê vale a pena viver.

Mas a busca de “emoções baratas” por meio da encenação de papéis sexuais dentro da comunidade lésbica floresceu ao longo dos anos 80, chegou aos anos 90 e está, de fato, comprometendo a sobrevivência da crítica lesbofeminista da masculinidade e da feminilidade. A imitação do sistema político de classe da heterossexualidade demonstra uma exatidão desconcertante na literatura recente sobre encenação de papéis sexuais. As pessoas que participam dela não percebem o humor em seu projeto, mesmo em suas apresentações mais atípicas, talvez porque o humor iria acabar com o burburinho que deveria ser um dos seus principais benefícios. The Persistent Desire, uma antologia de encenação de papéis sexuais editado por Joan Nestle, revela até que ponto os promotores da encenação de papéis sexuais estão dispostos a chegarem em sua imitação de alguns dos aspectos mais opressivos da heterossexualidade. Os propagandistas da encenação de papéis sexuais rejeitam qualquer sugestão de que a prática deles possa ter sido politicamente construída e que possa derivar da opressão de mulheres.

Um artigo escrito por Paula Austin, uma “autoidentificada femme negra” fornece uma imagem representativa da maneira que essa encenação de papéis sexuais imita a heterossexualidade antiquada. Austin percebe que ela é uma femme enquanto está em um relacionamento com uma lésbica chamada Rhon. Austin opina que “fui convencida de que ela havia um pênis escondido em algum lugar sob sua roupa”. Rhon é atraente porque ela é “facilmente, a sapatão mais durona com quem já estive”. Sobre outra amante, Buddy, ela escreve que “eu amo a dureza, o toque de poder e violência, a força, a sensação de ser possuída”. Austin confessa se sentir angustiada acerca da sua “femme-nilidade” e se ela é politicamente correta, mas claramente decide deixar de lado suas preocupações. Essa é a descrição dela de sua “femme-nilidade”:

Ser femme, para mim, significa usar uma saia curta e justa, cintas-ligas e saltos quinze quando estou saindo. Significa ficar em frente ao espelho, passando rímel e batom vermelho. Significa comprar uma blusa decotada para revelar um pouco do busto em algumas noites. Significa sorrir ou às vezes fazer bico, quando minha mulher coloca os braços dela na minha cintura e, com sua outra mão, vira meu rosto para me beijar. Significa sussurrar “Sou sua, me possua”, quando ela faz amor comigo. Significa me sentir sexy.

Essa, assim como outras descrições da nova encenação de papéis sexuais, tem uma qualidade digna de Mills and Boon. Mas o que é irônico é que, dentro da heterossexualidade, mulheres estão rejeitando essa desigualdade gendrada. A geração de jovens mulheres heterossexuais acharia um material como esse constrangedora para um público heterossexual, e mesmo Mills and Boon estão tendo que publicar modelos um pouco mais igualitários nos anos 90. O “toque de poder e violência” que excita Austin pode ser indício de abuso real na heterossexualidade e com frequÊncia significa o mesmo em relacionamentos lésbicos também.

O modelo de relacionamentos, pautados pela encenação de papéis sexuais, descrito na antologia tem um sabor de heterossexualidade da classe trabalhadora do coração dos EUA nos anos 50, meio folclórica. Femmes recebem suas butches em casa depois de um dia suado, geralmente realizando trabalho pesado, mas algumas vezes uma ocupação profissional, e prossegue oferecendo conforto diante de um mundo duro. Como Nestle expressa, “Quando ela chega em casa, devo acariciar as partes dela que foram desgastadas na tentativa de fazer seu trabalho em um mundo masculino”. Faz perguntar o que femmes devem fazer o dia inteiro, assar bolos? Então, a femme deve fazer sua butch se sentir segura o suficiente para se permitir ser vulnerável, o que é provado quando se faz amor, mas a masculinidade dela deve ser protegida: “Eu sei como fazer amor com/O corpo da sua mulher/Sem tirar a masculinidade dela”. O papel da femme, como o da dona de casa tradicional, é nutrir o poder de sua butch para que ela possa reter seu lugar na classe dominante masculina e seu poder sobre ela.

Embora isso possa parecer desconcertante sob uma perspectiva faminista, a idealização precisamente das dinâmicas de poder que mantêm mulheres subordinadas e abusadas dentro de relacionamentos heterossexuais é vista como positiva pelos novos praticantes da encenação de papéis sexuais. Mas então elas parecem declarar independência do movimento feminista. Algumas repudiam seus posicionamentos feministas anteriores, outras dizem que nunca foram feministas. Lyndall MacCowan, uma femme, explica, em The Persistent Desire, que nunca se identificou com o feminismo ou com ser uma mulher. Ela diz que quando se assumiu, nos anos 70:

Teria sido herético, então, como ainda é hoje, ser uma lésbica e declarar que o feminismo tem pouca significância para mim — imagine tentar ser ateísta na Europa do século XIV. Ainda assim, a afirmação é verdadeira, e é importante dizer isso, porque o feminismo começou a lançar uma sombra sobre o significado do lesbianismo. Não é que eu não acredite que mulheres sejam oprimidas, mas eu nunca fui capaz de me identificar com esse grupo abrangente “mulher”. Eu nunca fui tão oprimida como mulher quanto eu sou como lésbica.

MacCowan afirma que ser lésbica significa “saber que não sou uma mulher”. Ainda assim, ser uma lésbica femme, na verdaed, a submete diretamente à pressão de mulheres. Paula Austin escreve sobre a dificuldade de ter que passar pelo assédio de homens porque ela parece ser uma mulher heterossexual, e pode-se imaginar que MacCowan, que favorece vestimentas similares, tenha o mesmo problema.

Afirmações raivosas sobre o comportamento de bullying e autoritário de lésbicas feministas em relação àquelas que, como MacCowan ou JoAnn Loulan, realmente gostariam de ser femmes são comuns na literatura sobre encenação de papéis sexuais. Essa abordagem os libera da responsabilidade de terem, de forma consciente, divulgado ideias feministas nos anos 70. Em vez de realmente serem vítimas silenciosas, quando estiveram em movimentos lesbofeministas, é mais provável que elas simplesmente tenham mudado de ideia para se encaixarem na moda de reação conservadora.

É nas explicações oferecidas para a encenação de papéis sexuais que essencialismo por trás da ideologia butch/femme fica mais evidente. Explicações biológicas simplistas usualmente não são sugeridas, embora mesmo estas estejam retornando em algumas áreas. Loulan sifere que a hmossexualidade é hereditária, uma ideia abandonada mesmo pela maior parte dos sexólogos, depois da expansão da psicanálise antes da Segunda Guerra Mundial.

Alguns de nós simplesmente nasceu assim. Provavelmente é genético; a homossexualidade é forte em algumas famílias. Conheço uma mulher que tem seis irmãos e irmãs e todos, com exceção de um, são gays.

Ela afirma que “podemos contar” com histórias da homossexualidade ser um traço da família “para provar que, sim, um dos componentes é nosso DNA”. Parece surpreendente que o fato de a maioria das lésbicas e homens gays terem pais heterossexuais não abale o apelo do argumento da hereditariedade. De maneira interessante, ela quer usar uma combinação de explicações usando a genética em alguns casos e a “escolha” em outros. A variedade genética, aparentemente, é auto identificada, se você diz que é um homossexual genético, então você é. Essa combinação é reminiscente da velha ideia sexológica de que homossexuais se dividem em invertidos e pervertidos. Invertidos são os congênitos que não puderam escapar do seu destino e que merecem empatia, e os pervertidos escolheram ser maus. É interessante que o pensamento de alguém como Loulan, que teve contato com feminismo nos anos 70, possa se voltar tão facilmente para a sexologia tradicional. Isso sugere um conservadorismo profundamente enraizado, que não pôde ser alterado pela experiência que ela teve com o feminismo. Loulan fica desconfortável em sugerir que toda homossexualidade seja genética porque ela está alerta para a possibilidade de isso ser usado para sugerir um “defeito genético” e ela não acha que o lesbianismo seja “patológico”.

Ao explicar a encenação de papéis sexuais, Loulan opta por uma explicação psicológica, em termos de arquétipos. Ela diz que lésbicas têm certos arquétipos enterrados profundamente no inconsciente coletivo com os quais não se pode discutir. Cada um é “uma imagem que determina comportamentos e respostas emocionais inconscientemente”. A encenação de papéis sexuais, então, não é o resultado de um determinismo biológico, e sim psicológico. Os arquétipos lésbicos mais comuns são “os conceitos de butch e femme e, então, recentemente, o de androginia também”. A encenação de papéis sexuais arquetípicos é, aparentemente, tão determinante que todas as lésbicas estão, de alguma forma, conectadas a ela, mesmo que não admitam. Ela descreve “esse erotismo lésbicas de butch e femme” como algo “com a qual cada uma de nós está conectada, que todas nós fomos levadas a negar, desprezar e a nos envergonharmos…”. Isso coloca aquelas de nós que ainda querem negar ela em um tipo de falsa consciência. O público dela costuma estar nesse estado de ignorância. Ela conta que quando pergunta ao público se já se avaliaram numa escala butch/femme, 95% diz que sim, mas então, quando pergunta se a encenação de papéis sexuais é importante para elas, 95% diz que “não é importante em suas vidas”.A única explicação, para Loulan, é que 95% das lésbicas estão em negação e que é sua triste missão tentar abrir as mentes delas para os prazeres da encenação de papéis sexuais. Sexólogos têm tradicionalmente assumido responsabilidades incríveis como essa, e não se acovardaram diante da ideia de ter que mudar o comportamento sexual de mulheres em massa para as encaixarem em suas prescrições.

Joan Nestle, em um painel ocorrido em 1985 sobre a encenação de papéis sexuais, ofereceu uma versão da teoria do arquétipo. Ela disse que quando conhecia uma butch, ela experimentava “um tipo de conhecimento premonitório básico uma sobre a outra”. Outra participante do painel, Jewelle Gomez, asseverou que a encenação de papéis sexuais é natural e inevitável. Ela vê butch e femme como representando os “dois pólos que a natureza apresenta a cada uma de nós”. Como prova, ela apresenta a sabedoria folclórica e o conceito de yin e yang da religião oriental. Ela considera que essa sabedoria ancestral foi perdida na religião puritana da Europa Ocidental, o que levou as pessoas a esquecerem que “existem dois lados no indivíduo”. Supostamente, feminismo, que questionava a sabedoria folclórica de todas as ideologias patriarcais sobre a natureza essencial do gênero, teve sua parcela de culpa nesse esquecimento trágico. Ela descreve esse dualismo essencial como “um princípio natural, um princípio natural, psicológico, biológico, emocional e fisiológico”. Isso não deixa muito espaço aberto para opositores de consciência.

Existem acadêmicas lésbicas, bem como terapeutas sexuais, envolvidas na promoção do novo essencialismo da encenação de papéis sexuais. Saskia Wieringa é uma antropóloga que afirma já ter cometido o erro, por causa da consciência feminista, de ver a cultura butch/femme no Ocidente como “antiquada”. Então, ela experimentou a cultura de bares lésbicos de Jacarta e de Lima e percebeu “como meu chamado lesbianismo político era limitado”. A descoberta de algo parecido com a encenação de papéis sexuais ocidental em outras culturas a convenceu da pobreza da abordagem socioconstrucionista do lesbianismo. Ela decidiu que fatores psicobiológicos deveriam estar envolvidos. A existência da encenação de papéis sexuais em culturas não ocidentais pode ser usada como suporte para uma abordagem feminista socioconstrucionista. Se a encenação lésbica de papéis sexuais está relacionada à encenação heterossexual de papéis sexuais, então poderíamos esperar que fosse particularmente forte em períodos e culturas em que a diferenciação de gênero fosse reforçada de forma mais rígida dentro da heterossexualidade. Isso poderia explicar a cultura de bar em Jakarta e em Lima mais facilmente que a invenção de uma encenação essencial.

Explicações feministas da encenação de papéis sexuais que a relacionam aos papéis sexuais da supremacia masculina são sumariamente rejeitados pelos proponentes da encenação lésbica de papéis sexuais. Loulan atribui a ideia feminista de que lésbicas que encenam papéis sexuais estão “imitando papéis masculinos/femininos” ao auto-ódio lésbicas, nosso medo de que lésbicas sejam apenas uma versão inferior da heterossexualidade. Ela afirma que “em algum lugar profundo no nosso self homofóbico nós concordamos que lésbicas sejam substitutas do modelo heterossexual”, quando, na verdade, “butch e femme não têm nada a ver com masculino e feminino”. A encenação de papéis sexuais é “algo profundamente feminino” que não deriva do masculino/feminino, e sim de uma outra raiz, de um arquétipo ou princípio do qual se originam tanto os papéis masculino/feminino como o da encenação lésbica: o dualismo na natureza. Isso significa que, em vez de estar imitando um original heterossexual, lésbicas retiram seus papéis de forma independente da mesma origem, na natureza, que os homens e mulheres heterossexuais. Parece surpreendente que o grande dualismo original da natureza seja tão específico sobre quem limpa a casa e faz fofoca, mas parece que é mesmo. Essa é a descrição de Loulan sobre a “energia femme”.

Uma certa leveza, um certo brilho, um certo interesse em cada pequeno detalhe sobre aquilo que minha melhor amiga disse para a pessoa que ela conheceu no mercado. Uma conexão com colunas de fofoca recheadas de pessoas que não conheço e nunca vou conhecer.

Supostamente, lésbicas que sofrem de depressão não poderiam ser femmes, já que elas não teriam o requerido brilho. Femmes que responderam ao questionário de Loulan a irritaram por serem “mais propensas a tomarem iniciativa na limpeza e na decoração da casa, no cuidado de filhos, na organização de atividades sociais e na socialização em si”. Ela acha que isso se parece demais com os papéis masculino/feminino. Poderia-se até mesmo sugerir que a femmenilidade teria algo a ver com a subordinação aprendida feminina, em vez de grandes arquétipos celestes.

Lyndall MacCowan afirma que masculinidade e feminilidade, na heterossexualidade, são apenas dois gêneros e que, na verdade, poderiam existir muitos mais. Butch e femme são gêneros também, “gêneros lesbo-específicos”, e parte dessa potencial imensa variedade. Ela acredita que “sistemas de Gênero são uma universalidade cultural” e que não é verdade que “um sistema de gênero sempre subentenda sexismo e homofobia”. Gênero só é opressivo se limitado a dois em uma sociedade em particular e se estiverem “rigidamente relacionados” a sexo biológico. De acordo com essa interpretação incomum de gênero como simplesmente uma categoria desgastada, ela também vê a “androginia” como um gênero lésbico. Claramente, defensores da encenação de papéis sexuais precisam repudiar uma análise feminista de gênero, se quiserem ter qualquer respeito próprio e acreditar que seus jogos são inofensivos. Então, eles buscam criar confusão sobre o que é gênero.

Uma análise feminista veria gênero como send uma categoria política, na verdade uma classe política, na qual seres humanos são colocados de acordo com a posse — ou não — de um pênis. Aqueles que possuem o gênero masculino não formam uma simples categoria erótica interessante, mas a classe dominante no sistema de opressão chamado supremacia masculina, no qual mulheres estão sofrendo e morrendo. A diferença de poder entre essas duas classes de gênero é erotizada para formar o que, sob a supremacia masculina, é entendido como sexo. Assim, para muitos, para fazer sexo é necessário ter um gênero e se relacionar com alguém do gênero oposto. “Gênero” como uma forma de conseguir excitação sexual é um derivado direto do gênero, o mecanismo de regulação do sistema de classes da supremacia masculina. MacCowan termina seu texto afirmando que “é hora de reivindicarmos o direito de brincar com o gênero”. Mas é difícil ver como a repetição barata do papel feminino dentro do qual uma mulher tem sido criada, tentando viver como uma heroína de Mills and Boon, está “brincando” com qualquer coisa. E as oportunidades para mulheres heterossexuais para “brincarem” parecem ainda mais limitadas. Se elas experimentam a feminilidade, ninguém percebe, e se elas experimentam a masculinidade podem encontrar resistência vinda de homens.

Feministas lésbicas que se opõem à encenação de papéis sexuais são chamadas de “andróginas” na literatura sobre a encenação de papéis sexuais. Feministas lésbicas, geralmente, não usam essa palavra para se referirem a si mesmas porque ela não significa a eliminação da masculinidade e da feminilidade, que é o projeto feminista. Androginia representa a combinação da masculinidade e da feminilidade em uma pessoa. Janice Raymond vê a ideia da androginia como fundamental para justificar a heterossexualidade como uma instituição política.

… a hetero-realidade e as hetero-relações são construídas no mito da androginia. ‘Portanto, como mulher, deve se unir a um homem’ para realizar o suposto propósito cósmico de reunir aquilo que foi misticamente separado em masculino e feminino. Argumentos apoiando a primazia e a prevalência das hetero-relações estão, de alguma maneira, baseadas em uma polaridade cósmica entre masculino e feminino, na qual as metades perdidas buscam se reunir.

Androginia é um conceito rejeitado por lésbicas feministas. Não é acidental, portanto, que defensores da encenação de papéis sexuais usem esse termo para se referirem a feministas. Tentam atrair justamente aqueles que são por eles rejeitados e buscam desmantelar o gênero dentro de seu domínio venenoso. Loulan chama o projeto feminista de abolir as hierarquias de poder e de buscar equidade de “imperativo andrógino”. Ela é particularmente desdenhosa em relação a qualquer busca de equidade em relacionamentos sexuais.

As lésbicas que subscrevem ao imperativo andrógino idealiza um relacionamento que não tem diferença de poder… Não há como manter qualquer relacionamento livre de dinÂmicas de poder. O fato de que há duas pessoas trocando energias significa que estão transmitindo poder de um lado para o outro.

São as excitantes possibilidades eróticas oferecidas pela diferença de poder introduzidas ou formalizadas em relacionamentos lésbicas por meio da encenação de papéis sexuais que explica a sua recente popularidade. Ela não deriva da natureza, do imperativo psicológico ou da tradição. Os novos defensores da encenação de papéis sexuais apelam para a história lésbica para legitimar suas práticas, como se eles estivessem apenas continuando uma hnrosa tradição. Já argumentei, em outro lugar, que aqueles em busca de reabilitar a encenação de papéis sexuais nos anos 80 estavam fazendo isso por razões muito diferentes, especificamente eróticas. A nova encenação é uma variação do mais recente sadomasoquismo da moda. Não se parece com a versão histórica, porque papéis de gênero têm sido explodidos pela teoria feminista e não sã mais compulsórios, certamente não para aquelas que agora estão promovendo eles, que são bem versados na referida teoria. A repressão política dos anos 50 fez com que a encenação de papéis sexuais fosse uma forma de proteção quando uma das lésbicas em um casal podia “passar” nas ruas, e fez com que fosse difícil para algumas lésbicas pensarem para além da diferença de gênero, devido à propaganda generalizada de esferas separadas e da diferença de mulheres que permeava aquela década. Os anos 80 e 90 são tempos muito diferentes. A crítica feminista de longo alcance à heterossexualidade, desde Jill Johnston até Adrienne Rich e Monique Wittig, revelou o vazio da heterossexualidade tradicional e a nomeou como uma instituição de controle político das mulheres. Uma imitação das regras dessa instituição não poderia ser performada por ignorância nos anos 80 por aquelas que estivessem familiarizadas com a teoria feminista.

A encenação de papéis sexuais nos anos 80 é a pornografia soft, comparada com a pornografia hardcore do sadomasoquismo lésbico. Ela fornece a emoção da erotização da diferença de poder sem os extremos da violência e da vulgaridade. Merrill Mushroom descreve as vantagens da encenação de papéis sexuais usando as palavras de ordem no sadomasoquismo, como vulnerabilidade, confiança e poder.

A dinâmica básica da relação butch-femme envolve poder, confiança, vulnerabilidade, ternura e cuidado. Quando eu, como butch, demando da minha amante “Dá pra mim agora, gata”, penetrando nela tão profundamente quanto consigo, e ela se entrega completamente e flui em minha direção… Algumas vezes eu quero que ela me tome imediatamente, e então eu a seduzo da maneira como uma femme seduz uma butch — a seduzo a me possuir, em vez de querer que eu a possua. Algumas vezes, o lado butch dela vai dominar, e ela vai Fazer o Que Quiser comigo, e eu a deixarei.

Mushroom ainda vê a si mesma como uma butch, apesar da troca de papéis controlada. As desvantagens da encenação de papéis sexuais são esquecidas, nessa nova versão, que deveria ser apenas de brincadeira, e não levada a sério. Existem outras razões para a revitalização da encenação de papéis sexuais. Lésbicas estão querendo descrever problemas em seus relacionamentos, particularmente envolvendo a sexualidade, e, na ausência de uma linguagem feminista, agora que o feminismo é tão desprezado e descartado, a linguagem da encenação de papéis sexuais parece útil.

A terapeuta sexual JoAnn Loulan, em seu livro The Lesbian Erotic Dance, expressa sua visão de que a encenação de papéis sexuais diz respeito à construção de categorias desgastadas. Butch/femme, para ela, tem a ver com como escolher uma parceira sexual e o que fazer com elas. Para ela, o lesbianismo é uma prática sexual e é a prática sexual em si, praticando-o, o que torna o lesbianismo revolucionário. A crítica feminista da encenação de papéis sexuais é acusada pelos propagandistas dela de “dessexualizar” o lesbianismo. Loulan acha que ela “não pode deixar de comentar a dessexualização de nossa cultura”. Colaboradores do livro The Persistent Desire argumentam a mesma coisa. Madeline Davis ressalta:

Francamente, eu não entendo não se identificar a um papel. Claro, acredito nelas quando dizem que não se identificam, mas isso tudo parece “mais do mesmo” para mim e meio chato. Elas estão muito ocupadas dando as mãos, balançando e cantando a respeito de “se encher e transbordar”.

Arlene Istar reclama do feminismo, “Limitamos nossas opções ao dessexualizarmos nossa comunidade”. Lyndall MacCowan explica que “butch e femme são construções de gênero que surgiram de uma definição sexual do lesbianismo” e que “Butch-femme têm sido invisibilizada porque a sexualidade lésbica tem sid invisibilizada” e continua com um repúdio explícito da ousadia do feminismo lésbico em dar um significado político ao lesbianismo.

É hora de dizer explicitamente que a análise lesbofeminista que liga a opressão de mulheres ao gênero, aos papéis sexuais, à sexualidade e à orientação sexual é simplista, imprecisa e durou mais que a capacidade dela de alimentar o movimento pela liberação de mulheres — que dirá de lésbicas.

A sexualidade da encenação de papéis sexuais, como demonstrada nas coleções como a The Persistent Desire, imita a felação e o ato sexual clássicos da heterossexualidade de maneira quase religiosa, a fim de cumprir o potencial dessas práticas para a satisfação sadomasoquista. Uma butch, prestativamente, explica a excitação da penetração para ela: “…foder entre iguais não tem paixão… quando fodemos, nós possuímos. Quando somos fodidas, ns tornamos a posse”. Joan Nestle descreve como é ser fodida com um dildo, “…ela leva a mão para baixo e desliza o dildo para dentro de mim…ela começa a mover os quadris dela em estocadas curtas e fortes”. Pat Califia tem um poema na coleção sobre desejar que tivesse um pau com linhas como “Imaginando o comprimento inchado e rígido/enfiado em você”, “Fodendo até eu gozar,/Ficando dentro de você até eu ficar dura de novo”. As palavras usadas para foder no poema são “enfiar e estocar e transar”, “perfurar”, “machucar e encher e socar dentro de você”.

Mais surpreendente que a imitação brutal do ato sexual é a prática de chupar o pau. Isso significa performar o ato de felação em um dildo. Jan Brown explica que a razão para essa prática é que se trata da epítome da dominação e submissão. “Tem a ver com o impulso de dominar, tomar e degradar. Tem a ver com a necessidade feroz de se submeter. De servir a alguém”. Nestle também descreve o sexo oral. Para que não falte potencial erótico para a mulher amarrada ao dildo, Nestle inventa uma variação. “Pego um de suas mãos e o enrolo pela base, para que sinta meus lábios, enquanto os movo…lambendo o pau roxo”.

As práticas de encenação de papéis sexuais descritas, em sua determinação de imitar o sexo heterossexual tradicional, incluem a violência não-consensual. O poema acima de Pat Califia sobre perfurar e machucar também menciona o alcoolismo e a violência da butch. Scarlet Woman escreve sobre o que seria, em um contexto heterossexual, suscetível à acusação de estupro marital. A mulher acorda “Sob as mãos rápidas, alarmada em uma excitação instantânea” e “Você se mexe mais rápido do que eu consigo estocar em você” enquanto “Meu cérebro está dormindo”. No entanto, isso é representado como aceitável, pois a vítima fica excitada no decorrer do evento. Talvez não seja surpresa que quando as dinâmicas da heterossexualidade são imitadas até as suas dinâmicas de atividade e passividade, então é provável que o estupro se torne uma possibilidade real entre mulheres.

É um segredo compartilhado entre proponentes do sadomasoquismo lésbicas que a sexualidade da crueldade está ligada ao abuso sexual na infância. Praticantes defendem o sadomasoquismo afirmando que é a única maneira que conseguem experimentar prazer sexual, porque seu abuso vinculou abuso e prazer de forma tão profunda que qualquer possibilidade de uma erotização da igualdade não está nas cartas. A partir dos escritos de pessoas que praticam a encenação de papéis sexuais, parece evidente que existem ligações parecidas entre a compulsividade das práticas mais brandas de sadomasoquismo envolvidas nelas e a opressão de mulheres. Jan Brown, em The Persistent Desire, nos conta que trabalhou como uma prostituta nas ruas aos dezessete anos. Como uma adulta butch, ela nos diz que ela e suas amigas que também praticam a encenação de papéis sexuais mentiram para feministas, para fazer com que suas práticas sexuais parecessem respeitáveis. “Nós explicamos a elas que, ainda que muitas de nós bata uma com estupro coletivo, tortura, papai em nossas camas e outras imagens inegavelmente incorretas, realmente não era motivo para perder o sono”. Peças enfatizaram a diferença entre fantasia e realidade e que elas estavam no controle das fantasias delas. Mas ela diz “nós mentimos”. Na verdade, é a falta de controle que é atraente. O poder da fantasia repousa

…no desejo de ser dominada, forçada, machucada, usada, objetificada. Nós batemos uma para o estuprador, para o Hell’s Angel, para o papai, para o Nazi, para o policial e para todas as outras imagens que não têm nada a ver com o tipo de sexo lésbico que envolve murmúrios de carinho, acariciar de seios e um trabalho de língua longo e lento. E, sim, também sonhamos em possuir. Sonhamos com o sangue de alguém em nossas mãos, em rir do choro por misericórdia. Usamos o uniforme e a arma; nós puxamos nosso pau para fora de nossas calças para enfiar em um corpo relutante. Algumas vezes, queremos ceder à mão do estrangulador. Algumas vezes, precisamos ter um pinto duro como pedra entre nossas pernas, ter a liberdade de ignorar o “não” ou de ter nosso próprio “não” ignorado.

Brown explica que as fantasias surgem diretamente da opressão de mulheres porque “muitas de nós é graduada na universidade de auto-destruição”. Elas são “sobreviventes das ruas, sobreviventes de incesto”, viveram com “namorados abusivos” ou com “abuso de substância” e “carregam muitos tipos de cicatrizes”. Mas o sexo que é crueldade erotizada é a salvação delas e “nos mantém vivas — fora de prisões e de alas trancadas, relacionamentos abusivos e brigas de bar com poucas chances de ganhar”. Brown explica muito diretamente como a encenação de papéis sexuais erotiza a experiência material real da brutalidade.

Um poema na revista Femme-Butch Reader reforça essa mesma ideia. A narradora poética de Sonja Franeta explica que ela ouvia os sons de seu pai batendo em sua mãe e abusando dela e “descobriu como esfregar/a dor para longe diretamente em mim mesma”. Ela estava batendo em si mesma. Mais uma vez, a crueldade erotizada é vista como a resposta com a qual “nossa dor se transformará em prazer” e é expressa, dessa vez, em fivelas de cintos, botas, jaquetas de couro, faca e ser “durona”. A ideia de que a sexualidade da encenação de papéis sexuais, como outras formas de sadomasoquismo, seja uma forma de ritual religioso do masoquismo que salvará da dor real ou compensará por ela é um refrão repetido.

Não são apenas os praticantes libertários da encenação de papéis sexuais que caem nessa falácia essencialista. Três lésbicas separatistas radicais que vivem em Oakland, na Califórnia, que têm perspectivas feministas impecáveis sobre o sadomasoquismo e feminilidade estão usando a ideia de butch e femme de maneiras que compartilham algumas das implicações profundamente problemáticas da perspectiva libertária que vimos acima. Bev Jo, Linda Strega e Ruston atacam o que percebem como uma opressão de butches por femmes. Elas não vêem, de forma alguma. butch e femme como categorias eróticas. As definições delas são políticas. Elas vêem butches como “aquelas que, enquanto meninas, rejeitaram a feminização e recusaram desempenhar o papel designado por homens oara mulheres” e femmes como “aquelas que aceitaram o papel feminino, em vários graus, enquanto meninas”. Elas rejeitam inteiramente a ideia de encenação de papéis sexuais e acreditam que lésbicas deveriam estar evitando qualquer comportamento “masculino” ou “feminino. Mas elas acreditam que butch e femme são categorias nas quais todas as lésbicas caem, sem exceção, que elas são “identidades fundamentais” que “todas as Lésbicas têm”. Elas perguntam “É possível não ser Butch ou Femme?” e respondem “não”.

Elas parecem ter decidido usar o vocabulário da encenação de papéis sexuais para se referirem a uma questão política significativa. Essa é a diferença na experiência entre lésbicas que sempre pareceram ser lésbicas e sofreram punições pela visibilidade lésbica e aquelas lésbicas com “passabilidade”, que adotavam vestimentas femininas ou que se assumiram lésbicas depois de algum tempo vivendo como heterossexuais e coletando privilégios que lésbicas de longa data não puderam adquirir. Elas definem lésbicas que carregam o padrão da visibilidade lésbica como heroínas valentes da liberação lésbica e como butches. Joan Nestle, que vem de uma política muito diferente, corrobora com a mesma ideia. De fato, a admiração pelas butches visíveis, expresso pelas femmes jovens parece emanar de uma culpa compreensível acerca da suposição do privilégio da passabilidade. Femmes, como muitas delas apontam, apenas são visíveis quando estão nos braços de uma bitch Jo, Strega e Ruston têm uma abordagem muito diferente. Elas convocam todas as lésbicas para simplesmente renunciarem aos privilégios da passabilidade e abrirem mão da feminilidade para que “butches” deixem de sofrer por sua visibilidade. Essa é uma solução da dinâmica lésbica mais positiva.

Entretanto, o uso delas do vocabulário da encenação de papéis sexuais em situações em que parece inapropriado, minimiza a importância dos argumentos políticos que elas estão construindo. Dizer que crianças com dois anos estão se prendendo a um sistema no qual, por toda sua vida, estarão oprimindo butches ou sendo oprimidas como butches, ao decidirem aceitar ou rejeitar a feminilidade, cheira a essencialismo. Isso enrijece as categorias butch/femme e não permite mudanças. Elas buscam reverter o que vêem como a opressão de butches por femmes, mas, ao fazer isso, criam uma nova hierarquia. Butches, que elas vêem como raras, possivelmente apenas 5 em cada 100 lésbicas, são “mais próximas ao nosso estado natural ao nascer”, de ser uma fêmea. Femmes nunca serão capazes de se tornar tão “naturais” e, então, estão relegadas a estarem em uma categoria inferior por todas as suas vidas. A criação desse tipo de divisões, tão desnecessárias, não ajudam na construção da comunidade lésbica feminista. Duas lésbicas que adotam visual e comportamentos idênticos, ambas em camisas quadriculadas, jeans e botas podem, de fato, de acordo com essa análise, permanecer em categorias com status diferentes por todas as suas vidas.

De acordo com essa análise, butches e femmes podem ser identificadas pelas conhecedoras instantaneamente, mesmo que elas próprias não saibam o que são “geralmente, você consegue identificar quando alguém que você acaba de conhecer é butch ou femme”. Algumas pistas para a identificação são oferecidas sob a manchete “Uma lista honesta de uma Femme para a Auto-identificação”. A femme em questão explica que, quando ela conhece outras lésbicas, ela sente “menos diferença com femmes” e com uma butch ela sente uma “barreira em potencial”. Ela sente que ela própria “se movimenta como uma femme e automaticamente exibe alguns maneirismos femininos”. Além disso, ela descobre que “atividades femininas como costurar, bordar, cozinhar e outras coisas designadas como ‘trabalho de mulher’ parecem coisas que pertencem a ela e à sua ‘esfera de atividade’”. Parece que o grande arquétipo dos céus está trabalhando novamente.

Ainda assim, o trabalho dessas três lésbicas contém análises feministas muito esclarecidas e persuasivas, como a de Linda Strega sobre o movimento em direção à feminilidade na comunidade lésbica dos anos 80. Linda Strega chama a feminilidade lésbica de a “Grande Liquidação”. Ela explica que outras lésbicas a “agrediram verbalmente” em encontros sociais questionando o porquê de ela querer “usar um uniforme”. Essa agressão social em torno do que lésbicas feministas sempre tenderam a usar, camisa e jeans, é o paralelo da agressão literária realizada pelos encenadores de papéis sexuais como JoAnn Loulan e terapeutas sexuais como Margaret Nicholls. Como Strega aponta, aquelas que poderiam, de maneira mais justa, ser vistas como se estivessem usando um uniforme seriam, com certeza, as lésbicas que escolhem imitar a feminilidade tradicional desenhada por homens. De alguma maneira, as recém-lésbicas femininas veem a si mesmas como verdadeiramente corajosas por desafiarem uma pequena fração do mundo ocidental que não reforça a feminilidade compulsória sobre mulheres, as lésbicas feministas. Strega sugere que em vez de ser um ato de heroísmo, o retorno à feminilidade tem a ver com a “passabilidade” para ganhar privilégios.

No final dos anos 80, tornou-se cada vez mais difícil afirmar que tais e tais mulheres “parecem lésbicas”. Manifestantes lésbicas raivosas diriam que não existe isso de “o visual de uma lésbica”. Bem, como Strega, eu penso que não é bem assim. Tem existido uma tradição histórica de lésbicas em rejeitarem a feminilidade de maneiras diferentes e em graus diferentes, mas a rejeição da feminilidade tem sido um fio condutor, em minha opinião. Lésbicas têm tendido a afirmar a dignidade contra as humilhações sociais da feminilidade desenhada por homens. As lésbicas em boates feministas, nos anos 70 e início dos anos 80, não pareciam muito diferentes das lésbicas em boates lésbicas tradicionais: camisas, camisetas e jeans predominavam e também o cabelo curto. A estratégia política de parecer ser lésbica é mais do que apenas um desejo pessoal de estar aquecida e confortável, e possui uma liberdade de ação, muito útil em um mundo no qual homens atacam mulheres. É uma estratégia importante para a criação de liberdade lésbica. No ambiente de trabalho, em suas famílias de origem, nas ruas, lésbicas que “parecem ser lésbicas” — e seus agressores sabem o que isso significa — correm riscos. Quanto mais lésbicas e mulheres heterossexuais rejeitam a feminilidade, mais fácil fica para outras mulheres escaparem às normas degradantes da feminilidade e mais difícil fica para discriminar lésbicas.

A nova encenação de papéis sexuais é o fundamentalismo do lesbianismo. Como o fundamentalismo em todas as religiões patriarcais está fundamentado na e é desenhado para manter a opressão de mulheres por meio da afirmação da dominação masculina e da submissão feminina, a encenação de papéis sexuais lésbica também está e é. Ela requer a mesma auto-humilhação entusiástica de mulheres e atinge ela. É explicada pela mesma mitologia da biologia ou do yin e yang. A encenação de papéis sexuais lésbica precisa ser explicada como parte da mesma retaliação grave por todo o mundo contra a liberação de mulheres na qual algumas mulheres estão, efetivamente, abraçando sua própria opressão com uma obediência servil e repetição compulsiva, mas muitas mais estão se rebelando. A dança erótica da encenação de papéis sexuais, o ritmo sobre o qual Loulan compõe sua rapsódia, é o ritmo da servidão, da dominação masculina e da submissão feminina, um ritmo antigo, de fato, mas não natural.

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