A POSSIBILIDADE DA TEORIA FEMINISTA

Carla Gomes (@carlahenriqueg)
23 min readDec 23, 2023

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Marilyn Frye

FRYE, Marilyn. A Possibilidade da Teoria Feminista. In.: GARRY, Ann; PEARSALL, Marilyn (orgs). Women, Knowledge and Reality. Londres: ROUTLEDGE, 1996. p.34–47

Imagine que uma pessoa, sozinha, tenha observado um elefante sedado por uma hora, escrito uma descrição exaustiva a respeito dele e, então, com uma autossatisfação prazerosa, tenha anunciado esse registro como um relatório completo, preciso e profundo sobre “O Elefante”. O androcentrismo da filosofia e da ciência do mundo ocidental acumuladas é assim. Alguns, poucos, homens têm contado, com uma semelhante satisfação, a estória do mundo e da experiência humana — têm criado o que almeja ser, progressivamente, um relato cada vez mais completo, mais preciso e profundo daquilo que eles chamam de “Homem e o Mundo Dele”. O Homem a quem essa estória (incompleta) pertence acaba por ser os machos de uma espécie à qual está anexada, de modo constrangedor, problemático e paradoxal, uma subespécie ou uma “alterespécie” de indivíduos de quem os homens nascem, mas que não são homens. Trata-se, para colocar em termos mais palatáveis, de uma estória em que não cabem mulheres e na qual elas não se encaixam.

À luz do que é, de forma geral, considerado conhecimento comum (isto é, a estória oficial do “Homem e o Mundo Dele”), uma grande parte da experiência da maioria das mulheres parece anômala, discrepante, idiossincrática, caótica, “louca”. Sob essa fraca luz, nossas vidas são, em grande parte, ininteligíveis ou apenas inteligíveis como patológicas ou degeneradas. Enquanto cada mulher pensar que sua experiência individual é discrepante, ela tende a confiar na sabedoria recebida e desconfiar dos próprios sentidos e julgamento. Por exemplo, ela acreditará que a dor inexplicável que ela sente é imaginária, um fantasma. É na tomada de consciência entre mulheres (unidas intencionalmente ou por acaso) que descobrem que “anomalias” similares ocorrem na maior parte de suas vidas e que essas “anomalias”, tomadas em conjunto, formam um padrão ou muitos padrões. Os fragmentos que antes eram peculiaridades singulares de cada mulher (com frequência percebidas como defeitos) são coletivamente percebidas como encaixando-se em um todo coerente. O lado feliz disso é que aprendemos que não somos doentes ou monstruosas e aprendemos a confiar na nossa percepção. O lado triste é que o todo coerente que descobrimos é um padrão de opressão. As vidas de mulheres são repletas de evidências da distribuição desbalanceada de desgraças e riquezas entre mulheres e homens de cada classe, raça e circunstância. Na tomada de consciência, um dado é incorporado ao conhecimento: conhecimento da opressão de mulheres por homens.

Quando a experiência de mulheres é tornada inteligível nas comunicações de tomada de consciência, podemos reconhecer que é na estrutura das estórias masculinas acerca do mundo que mulheres não fazem sentido — que nossa própria experiência, apreciada coletivamente e conjuntamente, pode gerar uma imagem de nós mesmas e do mundo na qual somos inteligíveis. O processo de tomada de consciência nos revela a nós mesmas como observadoras autoritárias que não são nem homens e nem esses seres femininos fantásticos e impossíveis que habitam as estórias masculinas sobre o mundo. Nossa existência não é, inerentemente, paradoxal ou problemática. Nossa existência é uma massa indigesta de dados discrepantes para a estória de mundo patriarcal. Do ponto de vista dos dados discrepantes, essa estória parece terrivelmente parcial e distorcida — parece uma ficção infantil, fantástica e até mesmo perigosa. Supondo nossa autoridade perceptiva, comprometemo-nos, como deveríamos, em reescrever o mundo. O projeto da teoria feminista é escrever uma nova Enciclopédia. Seu título: O Mundo, Segundo as Mulheres.

A estória do mundo “ocidental” feita por homens e historicamente dominante reivindica universalidade e objetividade, mas, do ponto de vista das feministas, conspicuamente carece de ambas. Acreditando melhorar essa estória, pressupomos que a nossa deveria ser ambas. Ao adicionar vozes à conversa, esperamos alcançar um consenso mais amplo no acordo intersubjetivo que justifique a reivindicação à objetividade e, assim, também um terreno para uma universalização legítima.

Como muitos dos livros introdutórios de filosofia ensinam, a tradição “ocidental” da filosofia pressupõe a inteligibilidade do universo — a doutrina do isso e do nós é tal que o isso pode ser entendido por nós. O conhecedor humano, em tese qualquer um, pode, a princípio, entender o universo. Isso pressupõe uma uniformidade fundamental do conhecedor humano de forma que, a princípio, qualquer conhecedor seja intercambiável com qualquer outro. Na prática, isso significa que, na medida em que você acrescenta ao grupo os acordos intersubjetivos que serão contados como objetivos, você está adicionando peças de um único e coerente quebra-cabeça lógico. Você pode não saber onde as peças se encaixam, mas você presume que é impossível que qualquer uma delas não encaixe. A incongruência entre as observações dos observadores ou é meramente aparente ou se deve ao engano ou erro dos observadores, que são, em última instância, explicáveis e congruentes com o resto da imagem de mundo. Ao comprar essa doutrina, acredita-se que todos os conhecedores são iguais em essência, isto é, são essencialmente como ele mesmo; pensa-se, então, que pode-se falar não apenas como indivíduo, mas como ser humano.

Para pensadoras feministas da atualidade, o primeiro e mais fundamental ato de nossa emancipação foi garantir para nós mesmas a autoridade como observadoras, e nós conseguimos isso ao descobrirmos consensos nas experiências e nas percepções de mulheres. Faz sentido que quando a pensadora feminista supõe sua própria autoridade como conhecedora, ela possa reivindicar a igualdade em seus direitos de percepção na pseudodemocracia dos conhecedores intercambiáveis do universo inteligível. Faz sentido que ela leve a suposição de que todos os conhecedores são essencialmente iguais para a suposição de que todos os humanos posicionados de maneira similar (nesse caso, como mulheres no patriarcado) tenham, a princípio, como conhecedoras, o mesmo conhecimento. Ela poderia pensar que pode falar não só como indivíduo, mas como mulher.

As novas escritoras da estória do mundo primeiro tiveram que superar a fraude e as distorções que nos tornaram desconhecidas para nós mesmas. Temos feito um progresso notável: muitas, muitas de nós escreveram muitos capítulos de nossas próprias vidas e estamos vivendo vidas que nem nós mesmas ou nossas mães poderiam imaginar possíveis, ou sequer imagináveis. Temos desconstruído cânones, re-periodizado a história, revisado a língua, dissolvido disciplinas, adicionado um grande elenco de personagens e quebrado a maior parte das leis da lógica e do bom gosto. Mas temos descoberto nossa própria vasta ignorância acerca de outras mulheres do nosso tempo. Temos, repetidamente, descoberto que ignoramos ou confundimos as verdades da experiência de alguns grupos de mulheres e que temos sido, nós mesmas, ignoradas ou confundidas por algum outro segmento ou escola de pensamento feminista. Temos tido grande dificuldade em fazer as pazes com o fato das diferenças entre mulheres diferenças associadas com raça, classe, etnicidade, religião, nacionalidade, sexualidade, idade, deficiência e até mesmo uma variedade tal entre mulheres como as que são associadas apenas às peculiaridades da história pessoal individual.

O que queremos fazer é falar de e a partir das circunstâncias, experiências e percepção daquelas que são historicamente, materialmente, culturalmente construídas por ou por meio do conceito de mulher. Mas as diferenças entre mulheres de diferentes culturas, locais e gerações tornam claro que, embora toda humana fêmea possa viver vidas moldadas pelos conceitos de Mulher, elas não são todas moldadas pelo mesmo conceito de Mulher. Mesmo em uma comunidade e em um tempo estritamente circunscritos, nenhum indivíduo fêmea é uma réplica de carimbo de borracha do conceito prevalente de Mulher. (No caso do conceito de Mulher que prevalece em meu bairro, o conceito em si é internamente contraditório; ninguém poderia se encaixar). Além disso, Mulher não é apenas o conceito ou categoria social sob a qual qualquer uma de nós vive. Cada uma de nós é uma mulher de uma classe, uma cor, uma ocupação, um grupo étnico ou religioso, e é (ou não é) a irmã de alguém, esposa, mãe, filha, tia, professora, aluna, chefe, funcionária. É (ou não é) alcoolista, sobrevivente de câncer, sobrevivente do Holocausto. É pessoa com ou sem deficiência. É gorda ou magra. É lésbica ou heterossexual ou bissexual ou fora da escala. Uma mulher racializada circula no mundo (“ocidental”) tanto como “mulher” quanto como “racializada”. Uma mulher branca também circula tanto como mulher quanto como branca, não importando se suas experiências impõem a ela uma consciência nítida sobre o último. Lésbicas devem rejeitar a questão: vocês são, mais fundamentalmente, mulheres ou lésbicas? E insistimos que mulheres heterossexuais reconheçam que onde quer que elas circulem como mulheres elas também circulam como heterossexuais. Ninguém se depara com o mundo simplesmente como uma mulher. Ninguém observa e teoriza simplesmente como uma mulher. Se existe, em todo local, perspectivas e significados que podem ser chamados adequadamente como sendo das mulheres, não há, no entanto, algo como uma ou a estória da mulher sobre o que está acontecendo.

Esquematicamente e experimentalmente, O Problema da Diferença da Teoria Feminista é simples: uma boa parte do pensamento feminista tem emitido declarações e descrições que pertencem a “mulheres” e que não foram modificadas para marcar distinções entre as mulheres. E esses são os tipos de declarações que suas autoras querem fazer. Mas quando tais declarações e descrições são entregues ao público, elas encontram críticas, que vêm de mulheres que relatam que as afirmações são terrivelmente parciais, inverídicas ou ininteligíveis, quando julgadas pelas experiências dessas mulheres e pelo que é conhecimento comum entre as mulheres de sua comunidade, classe ou grupo. Esse criticismo parece ser (e sinto dessa maneira) simplesmente devastador.

Feminismo (a visão de mundo, a filosofia) repousa em uma das bases mais empíricas, nomeadamente: apostar sua vida na confiabilidade de seu próprio corpo como fonte de conhecimento. Ele repousa de modo igualmente fundamental no acordo intersubjetivo, uma vez que é um tipo de acordo sobre as percepções e a experiência entre mulheres que nos oferecidos por nossos dados-sentidos, por nosso dado-corpo, a persuasão convincente que possibilitou que se confiasse nisso. É um fato inesquecível, irreversível e definitivo da experiência feminista que o respeito pela experiência/voz/percepção/conhecimento de mulheres, nosso próprio ou de outras mulheres, é o terreno e a fundação para nossa emancipação — tanto da necessidade quanto da possibilidade de reescrever, reinventar o mundo. Portanto, é apenas com uma desonestidade violenta que poderíamos, ou podemos, falhar em dar crédito às vozes de mulheres, mesmo quando elas diferem amplamente e entram em conflito. E quando damos crédito a elas, logo se torna claro que, tomadas como um todo, a “experiência de mulheres” não é uniforme e coerente nas maneiras exigidas para fundar uma estrutura de conhecimento, da maneira como é tradicionalmente entendida.

Assim, a fé feminista e o respeito pela experiência e pela voz de toda mulher pareceu nos conduzir a um vale das sombras do Humanismo — um humanismo relativista desbotado, laissez-faire, “Estou bem e você também” (ou, mais recentemente, que parecia nos conduzir a um jardim sem fim do pós-modernismo relativista apocalíptico) no qual não há Mulheres e não há Verdade. E não é onde nós queremos estar.

A saída, ou o caminho de volta, penso eu, é conseguir clareza sobre como a prática da teoria feminista partiu da epistemologia predominantemente moderna “ocidental”, mesmo antes de algumas teóricas começarem a revisar o feminismo, transformando-o em uma forma de pós-modernismo.

A estória de mundo que rejeitamos é escrita em um código cuja sintaxe respeita generalizações enumerativas, estatísticas e metafísicas. Dessas, as generalizações enumerativas são, provavelmente, as mais gentis com particularidades. Mas são tão fracas que, para ser verdadeira, tal generalização deve realizar um tipo de violência ao comentar o que não é digno de nota e desdizer tudo o que é digno de ser dito acerca dos indivíduos em questão. (Por exemplo, eu dificilmente honro meus colegas no Departamento de Filosofia da MSU ao dizer que eles todos têm escritórios no campus da MSU, que é a coisa mais substancial que posso pensar que é incondicionalmente verdadeiro sobre todos e cada um deles). A generalização estatística pode ser o próximo tipo mais gentil com as particularidades, uma vez que se alegra em conviver com — isto é, ignorar — dados discrepantes. Generalização metafísica, declarar que isso ou aquilo é o que uma coisa é, ameaça a aniquilação daquilo que não se encaixa na prescrição. Por exemplo: Mulheres são nutrizes; se você não é nutriz, você não é uma mulher verdadeira, e sim um monstro. Toda generalização parece injusta com as particularidades, tocando na aversão que pessoas tão comumente sentem em “serem rotuladas”. Generalizações engolem as particularidades, as reduzem a um denominador comum. Nominação é dominação, ou parece ser.

Pode parecer que, em resposta ao constrangimento desses paradoxos, nós deveríamos nos recolher à autobiografia ou amarrar adjetivos adequados ao substantivo “mulher” - e muitas de nós têm tentado ambos. [Falando como uma lésbica branca, falante de inglês, sem deficiência, com educação superior, criada católica, de classe média, na meia-idade, de tamanho médio, vivendo no centro-oeste, posso relatar que essas estratégias reduzem a pessoa a bobagens e geram sérias questões sobre a ordem dos adjetivos em inglês]. Mais moderadamente, podemos voltar ao estreitamento do objeto das nossas afirmações a grupos específicos de mulheres identificadas por raça, classe, nacionalidade e por aí em diante. Em alguns casos, temos feito isso (sob o risco de, mesmo assim, generalizar em demasia ou estereotipar), mas o que temos a dizer, ou o que pensamos que tínhamos a dizer, não é apenas um compêndio de afirmações sobre as circunstâncias e experiências de mulheres em grupos particulares. Nosso projeto é teórico, filosófico e político. É preciso ter algum tipo de generalidade genérica genuína para ter teoria, filosofia, política.

Mas, desde o início, o feminismo tem abordado a generalidade por uma outra via. Nós precisamos prestar mais atenção ao que temos feito. Na tomada de consciência existe um movimento de afastamento do isolamento na individualidade, do particular. Mas mesmo no grupo local de tomada de consciência mais homogêneo culturalmente as vidas de mulheres não se revelam tão iguais como duas cópias do jornal matinal; não concordamos nos detalhes de nossas experiências ou nas opiniões e julgamentos. Percebemos similaridades em nossas experiências, mas não determinamos as frequências estatísticas dos eventos e circunstâncias que descobriram ser “comuns”. E a questão do que é uma mulher, longe de ser respondida, foi se tornando impossível de ser respondida e talvez até de ser perguntada. O movimento de generalização de nossa “ciência” não é em direção a uma generalização metafísica, estatística ou universal. Na tomada de consciência, mulheres se engajam em uma comunicação que tem sido apropriadamente chamada de “escutando uma à outra na fala”. É falar fatos e sentimentos não falados, desenterrar os dados de nossas vidas. Mas, enquanto a nomeação ocorre, a fala de cada mulher cria o contexto para a fala da outra, o dado de nossa experiência revela padrões dentro da experiência de uma mulher e entre as experiências de várias mulheres. As experiências de cada mulher e das mulheres, coletivamente, geram uma nova rede de significação. Nosso processo tem sido o de descobrir, reconhecer e criar padrões — padrões dentro dos quais a experiência fizesse um novo tipo de sentido ou, em muitas instâncias, que pela primeira vez fizessem qualquer tipo de sentido. Ao invés de trazer uma fase de investigação até o fechamento, quando se resumiria o que se sabe, como outros métodos de generalização fazem, o reconhecimento/construção de padrões abre o campo do significado e gera novas possibilidades de interpretação. Ao invés de retirar conclusões das observações, ela gera observações.

Nomear padrões não é reducionista ou totalitário. Por exemplo, percebemos que homens interrompem mulheres mais do que mulheres interrompem homens em conversas: nós reconhecemos um padrão de dominação nas conversas — dominação masculina. Nós não afirmamos que todo homem, em conversas com mulheres, sempre interrompem. (Nós também não arriscamos um palpite sobre a frequência estatística exata desse fenômeno, embora alguém uma vez tenha feito um estudo a esse respeito — acontece que se mostrou ser uma frequência ainda mais alta do que qualquer uma de nós suspeitou). Nós não fechamos qualquer questão sobre a consciência de homens acerca do que estão fazendo ou da experiência de mulheres nesse quesito. O que fazemos é rascunhar um esquema dentro do qual certos significados são sustentados. Faz com que uma mulher que se sente sufocada, frustrada, com raiva ou estúpida quando está na companhia de homens faça sentido. Faz com que mulheres que alteram o tom de voz e usam o vocabulário mais elitista que conseguem quando querem ser ouvidas no reino dos homens faça sentido. E, quando um homem me interrompe repetidamente, eu não fico apenas recebendo o ataque burramente; conhecendo o padrão, eu interpreto o evento, eu reconheço como um ato, como “dominantezante”. Reconhecer um padrão como esse pode também conduzir, por meio de vários eixos associativos, a outras descobertas. A nomeação do padrão de interrupções nas conversas prontamente oferece uma possibilidade de nomear outros cortes, interferências e amputações que sofremos, mas que não nomeamos.

Padrões rascunhados em pinceladas amplas extraem sentido de nossas experiências, mas não em um sentido único, unificado ou uniforme. Eles fazem com que nossas experiências diferentes tornem-se inteligíveis de maneiras diferentes. Nomear padrões é como registrar os ventos predominantes em um continente, não implica que todo e cada indivíduo e item na paisagem seja afetado de maneira idêntica. Por exemplo, as experiências do padrão de violência masculina são tão diferentes quanto o paternalismo superprotetor e o incesto, tão diferentes quanto o véu e o biquíni. As diferenças nas experiências e na história são, na verdade, necessárias para a percepção de padrões. É precisamente na homogeneidade do isolamento que não se pode ver padrões e que se permanece ininteligível para si mesma. O que descobrimos, quando entramos em contato com outras mulheres, não pode ser a percepção e a experiência uniforme de mulheres, ou não descobriríamos nada. É precisamente a articulação e a diferenciação das experiências formuladas na tomada de consciência que eleva o significado. A descoberta e invenção de padrões requer encontros com a diferença, com a variedade. A generalidade do padrão não é uma generalidade que derrota ou é derrotada pela variedade.

Nosso jogo é a percepção de padrões; nossas questões epistemológicas têm a ver com as estratégias para descobri-los e articulá-los efetivamente, julgando sua força e seu escopo, adequadamente remetendo as particularidades das experiências a eles e entendendo a variância da experiência dentro daquilo que tomamos como sendo um padrão. Da maneira como vejo, toda a discussão filosófica reflexiva dessas questões mal começaram, e não posso escrever o tratado que as desenvolve — nem sozinha ou a essa altura. Mas vou explorar parte do território.

Temos usado uma variedade de estratégias para descobrir padrões, para extrair sentido daquilo que não faz sentido. O mais importante é notar aquilo que não faz sentido. Descobrir padrões requer novos atos de atenção. Técnicas de tomada de consciência, tipicamente, promovem precisamente esse tipo de indisciplina, quebrando as estruturas usuais de conversação. Adotando práticas desenhadas para dar voz e audiência a toda mulher e para adiar o julgamento, a defesa, advocacia e persuasão, os membros do grupo bloqueiam as trilhas habituais de pensamento e de percepção. No caos que se sucede, elas deslizam, vagam ou invadem espaços semânticos inexplorados. Nesse território selvagem, pode-se ver o que não faz sentido — incongruências, estranheza, anomalias, atos indescritíveis, acusações inimagináveis, “buracos negros semânticos”. Tudo isso é negado, acobertado, disfarçado ou escondido por práticas e por uma linguagem que incorporam e protegem percepções e opiniões privilegiadas. Mas tudo isso, com frequência, e talvez de maneira característica, é denunciado por “emoções fora da lei”, e uma poderosa estratégia de descoberta, portanto, é legitimar uma emoção fora da lei. Você sente algo — raiva, dor, desespero, alegria, um ímpeto erótico — que não é aquilo que você deveria estar sentindo. Tudo convida você a sufocar esse sentimento, a decidir que está imaginando, exagerando ou a declarar a si mesma como louca ou má. A estratégia de descoberta, possibilitada pelas estruturas de tomada de consciência, é colocar esse sentimento no centro, deixe ele ser tomado como normal, apropriado, verdadeiro, real e, então, veja como todo o resto se posiciona em relação a ele. Repetidamente, por exemplo, a dor de mulheres, quando tomados simplesmente como dor — real e apropriada — leva à descoberta e confirma o padrão e padrões reiterados de violência masculina. De modo similar, dar centralidade à voz de qualquer “minoria” no campo de forças dos significados leva à descoberta de padrões para nós.

Outras estratégias de percepção de padrões são as estratégias familiares de criatividade e de autodefesa: cultivar a habilidade de se surpreender com coisas corriqueiras, a capacidade de amor e atenção, a confiança nos sentidos de alguém, a sensibilidade a cortinas de fumaça e a estórias suspeitas e por aí vai.

A percepção de padrões e os processos de checar tais percepções também demandam reconhecimento de que nem tudo que é relacionado a um padrão de maneira inteligível se encaixa no padrão. Grande parte do que eu disse ao longo de anos sobre mulheres não é a verdade sobre mim (como críticos, tanto hostis quanto amigáveis, já apontaram) e muito também não é a verdade sobre as mulheres para quem eu falei essas coisas. Uma razão para ser assim é que muito dos padrões que descobrimos não é descritivo e prescritivo — padrões de expectativas, suborno e punição dos quais muitas mulheres conseguem desviar, individualmente, em menor ou maior grau, por meio da rejeição, resistência ou evitamento. Um aspecto significativo da teoria feminista é uma afirmação da disparidade entre a realidade vivida de mulheres e os padrões do patriarcado. No projeto de se tornar inteligível, é tão útil reconhecer forças às quais não se está submetendo quanto reconhecer as forças pelas quais se está sendo moldada ou imobilizada. Por exemplo, existem tipos de puritanismo, “modéstia” e vergonha que moldam a experiência de mulheres acerca da sexualidade (não em todas as culturas, claro, mas certamente não apenas em culturas “ocidentais”). Para mulheres que não foram contaminadas por essa doença, não é menos relevante para alguns de seus significados da experiência sexual que muitas mulheres sejam assim moldadas, que muitos homens esperem que mulheres o sejam e que a mulher que é excepcional nesse aspecto tenha adquirido a sua própria forma, em parte, como resistência à força que molda e/ou parcialmente como uma forma de isolamento ou esquecimento que certamente tem outras manifestações interessantes. Reconhecer o padrão e “se colocar” na gama de significados que ele cria contribui ao entendimento dela de si mesma e do mundo, mesmo que ela não seja uma mulher restringida ou distorcida pela vergonha sexual.

Mas, além do fato de que a divergência individual do padrão que percebemos não pode, de modo geral, ser entendido como uma negação da existência ou da força do padrão, existem limites para os padrões que alguém consegue reconhecer.

Padrões são como metáforas. (Talvez, padrões sejam metáforas). Assim como uma metáfora esclarecedora eventualmente sucumbe, quando forçada com persistência, os padrões que tornam a experiência ininteligível só conseguem tornar um número limitado de experiências ininteligíveis de cada vez e, ao longo do tempo, esse alcance pode variar. No caso de forçar uma boa metáfora, descobre-se muito ao explorar seus limites, entendendo onde e porquê ela sucumbe. É parecido com padrões. Uma parte importante da percepção de padrões é explorar o alcance do padrão, e uma forma de errar é julgar mal seu escopo.

Um exemplo desse tipo de erro que se origina do cerne de algumas teorizações feministas está nas percepções de padrões de dependência de mulheres em relação a homens. Qualquer pessoa que esteja oprimindo outra, muito provavelmente está explorando estruturas sociais que coagem o outro a um tipo e um grau de dependência de seu opressor (caso contrário, a vítima poderia e iria se retirar da situação). Mas o padrão Americano branco de classe média de dependência econômica e psicológica coercitiva de mulheres em relação a homens, com oportunidades limitadas mas reais para mulheres individualmente escaparem da armadilha, é apenas uma adaptação de um padrão mais elevado. Em muitas culturas locais, a dependência é mais coletiva e não é primeiramente econômica, é mais ou menos inescapável, ou mais ou menos extrema. Podemos errar ao tomar uma expressão local como o padrão por si mesmo, como um padrão global, ou ao pensar que não existe esse padrão global porque vemos que nem todas experimentam a expressão particular dele até onde nossa atenção conseguiu alcançar (por exemplo, supondo que mulheres solteiras são independentes de homens, uma vez que elas não dependem economicamente de um marido).

Se o risco do trabalho das observadoras de padrões é julgar mal o escopo, o remédio é a comunicação. A estratégia pela qual se procede para testar o reconhecimento de padrões envolve muitos investigadores articulando padrões que perceberam e submetendo à avaliação da maior variedade de pessoas possível. Elas responderão ao dizer algo como “sim, isso faz sentido, se você não estiver falando sobre mim”. Padrões emergem nas respostas e sinalizam os limites do poder da criação de sentidos dos padrões que foram articulados. Um padrão não é falso ou fictício simplesmente porque as coisas não se encaixam nele (pois a falta de encaixe pode ser um significante tão poderoso quanto o encaixe) ou simplesmente porque existem limites para o que ele padroniza.

Pode-se considerar requisitar a articulação de padrões que sinalizam explicitamente os limites de seus poderes e aplicações, e então criticar aqueles que não o fazem ou que o fazem erroneamente. Mas a similaridade dos padrões e das metáforas se salienta novamente aqui. Quando se diz que a vida é um palco, não se especifica e não se pode especificar precisamente em quais dimensões e exatamente em que grau a vida é parecida com um palco. Um aspecto do poder da metáfora é a abertura de seu convite à interpretação — ela lança luz de determinada cor, mas não determina como o objeto fica sob essa luz para qualquer observador em particular. Os padrões articulados pela teoria feminista, de modo similar, tem o poder de tornar as vidas e as experiências inteligíveis de uma maneira que é útil, em parte porque eles não fixam sua própria aplicabilidade, mas oferecem apenas uma estrutura para a criação de sentido. Nem os padrões ou as metáforas contêm especificações de seus limites. Eles funcionam até o ponto em que param de funcionar. Você descobre onde isso ocorre ao trabalhar com eles até que se dissolvam. Como uma metáfora, um padrão precisa ser apreciado, colocado em uso. Você precisa seguir com ele. Você pode ultrapassar as limitações do poder deles sem perceber que o fez, se não estiver prestando atenção às vozes e às percepções de muitas mulheres.

O negócio de dizer quando alguém está apenas errado sobre um padrão, quando alguém está percebendo mal, é muito complicado para mulheres em nosso atual estado de comunidade, ou falta de comunidade. Trabalhamos em um clima de investigação no qual uma indústria de conhecimento hegemônico trabalha constantemente para prejudicar nossa confiança em nossas percepções, onde exigências políticas nos tentam a uma unidade forçada, e onde tudo pode afastar mulheres da formação de uma comunidade epistêmica. Em tais condições, paramos sem intuições claras e confiáveis de plausibilidade e sem um benefício adequado da função de monitoramento oferecidas por uma noção clara de audiência. É muito difícil saber quando estamos acertando e quando estamos fora da casinha. Nossa primeira urgência, então, incorporada a nossa situação e nosso método, é se engajar com a maior gama possível de observadoras, de teóricas. O que estamos fazendo é re-metaforizando o mundo. Precisamos de muitas e variadas observadoras para misturar metáforas selvagens o suficiente para que nunca nos faltem metáforas, para que nunca precisamos levar alguém para além de seus limites, apenas pela falta de alguém que possa continuar o trabalho de onde a outra parou.

Toda a população feminina do planeta não é nem falante ou audiência. Não tem uma estória. Mas comunicações entre mulheres — comunidade, amigas, colegas de trabalho, escritoras e suas leitoras, exploradoras e as audiências de suas estórias — têm gerado estórias de mundo nas quais as vidas e os destinos dos humanos desse planeta caem sobre os traços de falha do feminino e do masculino de forma tão proeminente e consistente quanto nos traços de falha das identidades tribais, raciais ou nacionais, e esses traços são caracterizados por mulheres realizando mais trabalho e controlando menos riquezas que homens e por homens infringindo mais violência às mulheres do que mulheres infringem aos homens e pela marginalização, redução e apagamento de mulheres das estórias de mundo contadas por homens. Nós não supomos esses padrões e suas muitas ramificações, nós os descobrimos. Nessa descoberta, nós descobrimos o terreno da comunidade epistêmica. Ela não é uma comunidade homogênea; ela não precisa ser, para suportar e validar a teoria feminista, na verdade, para suportar a criação de sentido da teoria feminista, ela não pode ser.

Se uma opressão em comum (mas não homogênea) é o que constitui nossa comunidade epistêmica, o que acontecerá quando nos libertarmos? Primeiro, suponho, a história comum da opressão e da liberação nos manteria por um longo tempo e profundamente em comunidade, mas então, eventualmente, talvez caiamos em um desarranjo teórico feliz e inofensivo. O que estamos escrevendo, O Mundo de Acordo com Mulheres, nunca foi mais do que uma antologia, uma coleção de contos unificados, como lã, apenas por fios que se entrelaçam sucessivamente e se mantêm unidos pela fricção, não amarrados pela lógica. Não existe qualquer razão para prever ou exigir que devam se manter unidos para sempre. Talvez, eventualmente, a categoria mulher seja obsoleta. Mas talvez não.

(O que segue é uma revisão do material que constituiu a seção final desse ensaio, quando estava ministrando ele como palestra, antes de sua publicação).

Se o projeto de escrita do mundo da teoria feminista não colapsa sob a enorme variedade de experiências e percepções de mulheres, mas na verdade requer diferenças e variedades em seu processo, porque as diferenças entre nós causam tanto problema? Uma razão é que algumas teóricas feministas temos, às vezes, falhado em reconhecer ou entender nosso próprio processo, o que, penso eu, é compreensível levando em conta nossa própria educação e história, como expliquei nas primeiras partes deste ensaio. Outro conjunto de razões têm a ver com a raça, classe e localização étnica das teóricas. Maior parte das teóricas feministas que estão melhor posicionadas política e economicamente para terem a maior audiência tem sido membros de grupos que, em geral, são privilegiados nas culturas ocidentais. As maneiras que nosso próprio racismo, viés de classe e investimento em nossos privilégios distorcem nossas percepções têm gerado más percepções de padrões e respostas não construtivas às influências corretivas das percepções de outras mulheres. Além disso, finalmente, é uma questão de voz.

A diferença entre uma generalização totalizante, redutora e dominadora e uma percepção de padrão amigável e aberta não está nas palavras usadas para expressá-las. Está em sua origem e sua finalidade. E isso é expresso e comunicado pela voz na qual as palavras são proferidas.

A voz da história do mundo dos homens é a voz do narrador que não precisa encaixar suas palavras na verdade, porque a verdade se encaixará em suas palavras. As coisas são verdade porque ele as diz, ele não as diz porque são verdade. A voz da estória do mundo dos homens é a voz cuja nomeação transforma a coisa em si mesma. Se, como Joyce Trebilcot disse, a verdade é “aquilo em que você precisa acreditar”, então essa é a voz daquele que está autorizado a estipular no que você deve acreditar. Palavras faladas nessa voz não tem realmente “a ver” com nada além do desejo e do poder do narrador, portanto nada além do desejo e do poder do narrador, logo nada dito nessa voz, ofende a todos e tudo o que supostamente trata: a medida em que que as palavras parecem se adequar a essas pessoas ou coisas, é apenas porque as palavras estão só reforçando a vontade e o poder que já moldaram as pessoas e as coisas para se adequarem às palavras. Pessoas que aprenderam a reconhecer o som dessa voz, mas que não estão autorizados a usá-la, não toleram seus pronunciamentos sobre elas; tudo o que ela diz é prejudicial, redutor, aniquilador. Pensem nas mulheres escutando as teorias de Freud sobre mulheres, ou em afro-americanos lendo as teorias das ciências sociais sobre a morte da família negra; pensem em como relatos bem intencionados de ingleses brancos sobre o alcoolismo entre os povos nativos soam para aqueles que são indígenas.

Agora considerem a teórica feminista branca altamente educada falando do alto de sua posição relativamente privilegiada e sendo escutada. Ela tomou lugar de destaque em certo domínio de investigação de forma justa; ela está justamente satisfeita e empoderada por sua recente descoberta da autoridade de sua própria experiÊncia e percepção; ela está justamente confiante da importância do que ela tem a dizer. Ela sabe que é justo e apropriado (epistemológica, política e moralmente) que ela seja uma participante plena da construção do mundo. Em que voz ela falará, agora que ela assumiu a autoridade para falar? Dada generalizada segregação de fato de raça e classe na qual ela tem vivido e dada a educação que teve, só há uma voz que ela já ouviu que é uma voz com autoridade: a voz do homem branco falando ex-cathedra. Um desastre provável é que ela não fale em uma nova voz autoral, mas na voz de seu pai. E se ela o fizer, é provável que muitas mulheres em sua audiência (especialmente aquelas que não conseguem imaginar a si mesmas falando naquela voz) escutem apenas o que é prejudicial, redutor, aniquilador.

Essa questão da voz não me parece ser uma coisa superficial. É mais fundamental, penso eu, que algo como usar jargão profissional para construir um argumento que poderia ser expresso em um vocabulário comum. Um ouvinte paciente pode, talvez com alguma ajuda, traduzir o jargão e descobrir que algo útil foi dito, mas essa voz é tal em que nada de útil pode ser dito (útil, quero dizer, para qualquer propósito que não seja a opressão), mesmo quando suas declarações “correspondem aos fatos”. Essa é a voz na qual a nomeação é dominação. É a voz que acompanha e reforça o olhar arrogante. Não é possível articular amigavelmente, cooperativamente, reciprocamente, empoderando as percepções de padrões nessa voz.

As vozes da autoridade patriarcal zumbiam em um uníssono surdo. Para algumas feminista, uma das coisas da agenda da práxis feminista pode ter sido retreinar as vozes (e ouvidos) deles e nossas para registros que harmonizem e que estão afinadas em harmonia.

Não posso simplesmente dizer como isso pode ser feito, claro, mas algumas ideias sobre isso me vêm à mente. Voz não é vocabulário, mas está associado ao vocabulário, e adquirir voz própria pode ser amplamente ajudado por um léxico original bem-humorado e pela abstenção a adotar cada moda linguística da intelligentsia Euro-americana. Também (um ponto que não é independente do anterior), as vozes que se pode projetar com certeza se relaciona às vozes às quais escuta e reage. Podemos adquirir vozes mais amigáveis ao escutar de maneira amigável e responsiva às vozes de outras mulheres — uma escuta que eu já sugeri como sendo central para o sucesso do projeto coletivo de percepção de padrões e de criação de sentido.

Se algumas de nós estão falando na voz errada, isso sugere que estamos escutando as vozes erradas ou escutando de um modo errado e que nossa teorização também será equivocada. Se é assim, então claramente a questão da voz é primordial para o projeto de percepção de padrões e criação de sentidos; não há separação entre o que é expresso e o modo de expressão. Para muitas mulheres, senão para todas, retreinar as vozes será indispensável para recontar o mundo.

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